sábado, 7 de agosto de 2010
Descendentes de escravos brigam com igreja por posse de imóveis há 200 anos no Rio
Sob o título em epígrafe, a matéria que a seguir reproduzimos mostra um lance da Ofensiva Quilombola no Brasil em área urbana. Para maiores informações, ler "A Revolução Quilombola - Guerra racial, confisco agrário e urbano, coletivismo", de Nelson Ramos Barretto (Artpress Indústria Gráfica e Editora, São Paulo, 2a. edição, 2008).
Publicado em 06/08/2010 às 06h00:
Moradores da Pedra do Sal, berço do samba, lutam para manter cultura
Carolina Farias/R7
Parte de uma região conhecida como Pequena África, na zona portuária do Rio de Janeiro, ganhará até o fim de 2010 o título de área quilombola do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Moradores da Pedra do Sal, um dos berços do samba carioca, afirmam que lutam lutam para provar que escravos ocupavam a área já em 1816.
No entanto, a VOT (Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência), irmandade da Igreja Católica, tem documentos que mostram a propriedade da área já no século 17. Existe até registro de doação da área feita por dom João 6º doou a área e imóveis à VOT em 1821.
Com o reconhecimento da área como quilombola, ao menos 17 famílias ligadas à Arqpedra (Associação da Comunidade Remanescente do Quilombo Pedra do Sal) devem ser beneficiadas com a titulação. A ordem afirma que entrará na Justiça para evitar a transferência da posse para a associação. Para dar o título à associação, o Incra prepara um RTID (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação) da Pedra do Sal e deve publicar o documento até o final do ano no “Diário Oficial” da União. A área apontada pela Arqpedra tem aproximadamente 200 metros quadrados. É pequena - vai do largo da Pedra do Sal (final da rua Argemiro Bulcão) até o fim da rua São Francisco da Prainha, que termina no largo São Francisco da Prainha, no bairro da Saúde -, mas foi palco de muitos episódios da história carioca.
Nela, sambistas estivadores descarregavam o sal que vinha do porto e depois se reuniam para rodas de samba. Foi dessa região que saíram nomes como Donga, Pixinguinha e João da Baiana. Atualmente, sambistas se reúnem segundas, quartas-feiras e um sábado por mês para tocar no largo.
A região será palco também de uma das maiores promessas de transformação da cidade para receber a Copa de 2014 e as Olimpíadas em 2016: o projeto Porto Maravilha, que deve revitalizar toda a zona portuária carioca. As obras começaram em junho. Mas, das 17 famílias que serão beneficiadas com a titulação de quilombola, somente nove residem na área. Isto porque a VOT, proprietária dos imóveis, começou em meados do ano 2000 um processo de despejo de moradores que vivem na área, segundo a Arqpedra.
A VOT afirma que criou um projeto humanitário, com recursos da Comunidade Europeia, e por isso teve de despejar as famílias dos sobrados – a grande maioria deles do fim do século 19 e começo século 20. São oficinas de marcenaria, corte e costura, informática, entre outras atividades, para a população carente do local. Para Marilucia Luzia da Conceição, da Arqpedra, a VOT começou os despejos e deixou os imóveis vazios para vendê-los. Ela e a mãe, de 80 anos, resistem na área e estão confiantes na titulação para poderem continuar no lugar. Às segundas-feiras, Marilucia vende comidas típicas quilombolas para quem procura o samba da Pedra do Sal. - Minha mãe continua a pagar o aluguel para não passar por constrangimento [do despejo]. Mas já vi gente sendo despejada, com as coisas jogadas na rua. Teve uma mulher que morreu quando o Oficial de Justiça bateu na porta dela.
Estado das casas
Marilucia e José Marcos Evangelista, também membro da Arqpedra, também alertam para o estado dos casarões da rua, com fachadas caindo aos pedaços. Eles mostraram à reportagem do R7 ao menos três imóveis da rua que eram pontos comerciais e que a VOT teria despejado os inquilinos. - Não tenho medo das coisas novas, mas não se mata a história. Um povo sem cultura e sem história não dá!
Para a rua mostrada pelos membros da Arqpedra, a VOT tem um outro projeto, que vai ampliar o número de oficinas de aprendizagem para a rua São Francisco da Prainha. A ordem nega que pretende vender os casarões. Na via já há uma padaria escola e uma gráfica.
O plano está no papel desde 2002, no entanto, diante da reivindicação da Arqpedra e da resistência dos moradores em saírem dos sobrados. O administrador dos imóveis da VOT, frei Jair Zolet, explicou os planos para os imóveis da rua reivindicada pela Arqpedra. - Além da padaria-escola, que já existe vai ter confeitaria, sorveteria, doceria, oficina de corte e costura industrial, informática, agência de turismo e artesanato. Nós solicitamos os imóveis, mas alguns não querem [sair] e o caso está na Justiça.
Em 12 de novembro de 2005, a FCP (Fundação Cultural Palmares), órgão do Ministério da Cultura, publicou a certidão de autorreconhecimento da comunidade oficialmente como remanescente de quilombo, o que reforçou a Arqpedra a reivindicar a titulação no Incra. Segundo o antropólogo Miguel Cardoso, do Incra, responsável pelo RTID, os sobradões da rua São Francisco da Prainha e o entorno, reivindicados pelos quilombolas, serão incluídos na titulação. - Mas podem fazer obras, nada impede, isto dependerá dos quilombolas quando tiverem o título. Cardoso garante que, quando o Incra emitir a documentação, a VOT será indenizada se apresentar documentação regular dos imóveis, sem irregularidade na transmissão dos títulos de posse. O Incra ainda não fez o estudo dessa documentação, segundo Cardoso. O antropólogo afirmou que o projeto Porto Maravilha não apresenta ameaça às tradições do lugar, que devem ganhar ainda maior proteção com a titulação como área quilombola. Contestação
Para contestar os argumentos do Incra para a titulação – em 2007 um laudo já havia sido elaborado pelo órgão federal, no entanto, sem dar ao título aos quilombolas – a VOT contratou o antropólogo Carlos Eduardo Medawar para provar que na área não há remanescentes de escravos e nenhuma ligação cultural com o surgimento do samba ou outras manifestações culturais.
Ele disse que fez um levantamento com isenção e que não encontrou ligações daquela região com o surgimento de alguma atividade cultural ligada ao nascimento do samba, mesmo a região sendo conhecida como parte da Pequena África.
- Falei com os moradores mais antigos da região e eles afirmaram desconhecer essa presença de negros aqui. O morro [da Conceição], onde fica a Pedra do Sal, foi povoado por portugueses e espanhóis. O Incra pode estar errado se apontar isso no relatório.
No portal do Inepac (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural), órgão do governo do Estado do Rio que tombou a área da Pedra do Sal, aponta o local como “testemunho cultural mais que secular da africanidade brasileira, espaço ritual consagrado e o mais antigo monumento vinculado à história do samba carioca”.
A VOT contestará a titulação, como afirmou a advogada da irmandade Tatiana Brandão, na Justiça. Ela disse esperar também pareceres do Ministério Público e outros órgãos.
- Aqui nós concentramos nossa obra social há praticamente 300 anos. Essa área é nossa.
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