Missionários e nações indígenas
"Folha de S. Paulo", 14 de outubro de
1978
Ao Papa Ignoto
Plinio Corrêa de Oliveira
Escrevo na quinta-feira. O conclave iniciar-se-á na
tarde de sábado. Quantos dias durará a escolha do novo Papa? Quem será o novo
Papa? Essa questão parece que se vai tornando mais enigmática, á medida que o
tempo corre.
Ora, antes mesmo que se saiba quem ele será, desejo
dirigir-lhe aqui uma súplica. Pois a magnitude do que vou pedir excede às
circunstâncias pessoais de quem venha a ser eleito. Escrevo, pois, ao Papa
ignoto.
Meu pedido cabe em meia dúzia de frases:
"Santo Padre, o Brasil é, no mundo de hoje, o
País de maior população católica. A unidade civil desse enorme bloco religioso
é fator fundamental para que ele possa dar inteiro cumprimento, entre as
nações, à sua vocação cristã. Ora, essa unidade está ameaçada.
"Um só gesto vosso bastará para salvá-la.
Fazei esse gesto logo nos primeiros dias após vossa eleição. Ela será o pórtico
de glória com que se abrirá vosso Pontificado.
"Santo Padre, afastai o perigo com que se
defronta a unidade do Brasil".
Como se vê, qualquer que seja a nacionalidade do
futuro Pontífice, seja ele bispo diocesano ou cardeal de Cúria, pouco importa.
Minha súplica é tal que, para ser bem acolhida, basta que ele seja simplesmente
Papa.
O difícil não está em enunciar o pedido, mas em lhe
explicar o porquê.
Na segunda quinzena de janeiro deste ano, 52
missionários de quatorze Prelazias e Dioceses, reunidos em Manaus, publicaram
extensa Declaração sobre "a situação de calamidade em que se encontram
numerosos povos indígenas da região, espoliados de suas terras e de suas
culturas, especialmente pela ganância de poderosos latifundiários". O
trecho entre aspas é do "Osservatore Romano" (19 de fevereiro, edição
semanal em português).
O órgão oficioso do Vaticano prossegue:
"O Comunicado Mensal da CNBB, em seu número de
janeiro, está publicando a íntegra da importante Declaração, bem como das
Conclusões do Curso (realizado por aqueles missionários sobre problemas
indígenas), das quais destacamos aqui o título "Autodeterminação":
"Os grupos indígenas têm o direito à autodeterminação já consagrado em
tantas cartas internacionais assinadas pelo Brasil, e seus membros têm direito
de serem reconhecidos como pessoas responsáveis. Reconhecemos que o índio tem o
seu direito especial, anterior ao nosso corpo jurídico. Tornamos nossa a
decisão tomada pelo índio presente em nosso curso: "Lutar pela
autodeterminação; mesmo que nos sujeitemos a prisões e a massacres, vamos
conseguir a autodeterminação do povo indígena".
De nenhum modo sou especializado em assuntos
indígenas e missionários. Não sei, portanto, se na terminologia específica da
matéria, a palavra "autodeterminação" tem um sentido peculiar.
Na
linguagem corrente – a minha, a dos leitores do "Osservatore", como
da "Folha de São Paulo" – ela indica o direito que tem uma nação de
decidir sobre seus próprios destinos. É idêntico a soberania. Pode ela
significar também, de modo mais restrito, autonomia de um grupo étnico,
regional ou cultural face ao todo político no qual esteja encaixado.
Assim se
poderia falar de "autodeterminação" – obviamente limitada – dos
Estados ou províncias dentro de uma federação, ou até dos municípios dentro do
Estado ou da província.
A pergunta se põe desde logo; o que entendem por
"autodeterminação" os missionários autores da Declaração? Pedem para
os grupos indígenas autonomia? Ou chegam ao extremo de pedir para eles a
soberania?
A segunda hipótese, verdadeiramente louca, parece
ter impressionante consonância com o contexto. Como vimos, a Declaração alude
ao "direito à autodeterminação já consagrado em tantas cartas
internacionais assinadas pelo Brasil". A referência às "cartas
internacionais" faz pensar mais em soberania, pois que é basicamente de
soberania que elas tratam.
As palavras que seguem parecem caminhar no mesmo
sentido, pois apresentam nossos tão diversificados índios como constituindo um
só "povo indígena". Uma nação, dir-se-ia, disposta a reivindicar sua
"autodeterminação" com o "animus" característico de um povo
subjugado, que luta por sua independência.
Dizem os missionários que querem
para o "povo indígena" a tal "autodeterminação" ainda que
se sujeitem "a prisões e a massacres". É difícil ler essas palavras
sem pensar numa guerra de secessão indígena, chefiada por sacerdotes e freiras
progressistas e esquerdistas.
Por mais desnorteante que tudo isto seja, o
restante da Declaração dos 52 missionários conduz à mesma impressão.
Eles pleiteiam que os índios constituam, à margem
do regime representativo brasileiro, todo um sistema próprio, com
"assembléias indígenas tribais, regionais, nacionais e a sua participação
em encontros internacionais". Ou seja, uma espécie de democracia indígena
intertribal, na qual não está representado o brasileiro não indígena.
Segundo a Declaração, no interior de cada tribo
indígena o poder emanará da própria tribo. Ele não será laico (como
infelizmente o é no Estado brasileiro), mas religioso-fetichista. Pois que
"em ordem à autodeterminação", a Declaração quer que seja reconhecida
"a autoridade dos chefes indígenas, pajés e outros líderes religiosos,
anciãos, dentro de suas concepções sociais e familiares".
Ou seja, cada tribo seria uma pequena unidade mais
ou menos monárquica ou democrática, com aspectos pronunciadamente teocráticos.
Naturalmente, cada peça de todo este mosaico tribal
evoluiria (se é que evoluirá) inspirada apenas por suas próprias
peculiaridades. E sem maior atenção à morfologia política e socioeconômica do
resto do Brasil. Tanto mais quanto, para assegurar a autodeterminação, a
Declaração pede que "as missões sejam as primeiras a romper, na prática,
com o regime de tutela a que sujeitaram os índios".
O mais curioso é que os missionários, rompendo o
"regime de tutela", pedem "uma tutela especial". Não do
poder Executivo, em relação ao qual se mostram abespinhados e agressivos, mas
do Legislativo, o qual deveria ter uma "CPI do Índio" permanente,
para "fiscalizar" a Presidência da República. Privilégio que nenhuma
classe ou setor de brasileiros possui.
E chegamos mais uma vez à autodeterminação. Pois os
índios constituiriam no Brasil um corpo privilegiado, um corpo pelo menos
semi-estrangeiro, cuja situação seria melhor que a de todos os brasileiros.
A frouxidão do nexo com o Brasil se revela por
inteiro nesta reivindicação: "As entidades internacionais, como a Comissão
dos Direitos Humanos da ONU, sejam regularmente informadas dos crimes cometidos
contra populações indígenas". O que importa dizer que a ONU funcionaria
como uma imensa CPI internacional, a fiscalizar permanentemente a CPI do
Legislativo brasileiro, a qual por sua fez fiscalizaria o Executivo.
A ONU... Bem se sabe o que isso significa. Bastará
que, na hora da votação, as nações do mundo comunista tenham interesse nisto,
para que votem reconhecendo como demonstrados os crimes mais inverossímeis. E
para obter maioria na ONU, elas se lançarão às barganhas. Uma calúnia contra o
Brasil poderá ser mercadejada por um Brejnev qualquer como se mercadeja um
frango ou um peixe numa feira.
Quem não percebe que as reivindicações missionárias
estão abrindo assim pontos de pouso em plena selva amazônica para a bota russa?
– A bota? As botas? Quantas botas? Centenas? Milhares? Quantos milhares?
O Papa ignoto poderá fazer cessar tudo isto de um
momento para outro. E situar a defesa dos direitos dos índios em termos que não
representem a depredação do Brasil.
E, francamente, duvido de que, sem a vontade dele,
algo de rápido e prático logre ser feito.
Para ele se voltam pois, aflições, preces e
esperanças que são minhas, porém não só minhas.
Vejamos.
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