ZANDER NAVARRO - OESP
Usei o mesmo título em
artigo publicado em 1986, indignado com a afronta do governo Sarney ao nomear
um latifundiário para o Incra. Naquela década me envolvera no ativismo a favor
da reforma agrária. Não obstante o anúncio pessimista, o esforço do conjunto de
militantes contribuiu para animar a única política de redistribuição de terras
já feita no Brasil, iniciada em 1996.
Desde então, em torno de 1 milhão de
famílias recebeu suas parcelas e aproximados 80 milhões de hectares foram
arrecadados para constituir os assentamentos rurais - mais de três vezes a área
de São Paulo.
Mantenho o título acima
porque é preciso reconhecer desapaixonadamente o fato, agora definitivo: morreu
a reforma agrária brasileira. Falta apenas alguma autoridade intimorata para
presidir a solenidade de despedida. Atualmente a ação governamental nesse campo
é um dispendioso e inacreditável faz de conta, sendo urgente a sua interrupção.
Muitos motivos feriram
mortalmente a reforma agrária, mas alguns são mais reveladores. O primeiro é de
cristalina obviedade, mas muitos fingem ignorá-lo: nenhuma política pública é
eterna, pois se conforma às contínuas mutações da sociedade.
O tema foi popular
nas décadas de 1950 e 1960, e surpreendeu que na virada do século o Brasil
patrocinasse uma vigorosa redistribuição de terras, um caso raro no mundo. Mas
é particularidade que se esgotou.
Seria sensato manter
essa política indefinidamente, quando o antigo País agrícola e agrário passou a
ser conduzido pela lógica econômica e cultural das cidades, atraindo os
migrantes rurais? A mudança espacial de moradia, de trabalho, de formas de vida
e também de mentalidades da vasta maioria da população, no último meio século,
liquidou a necessidade de democratizar a distribuição fundiária e sua demanda
sumiu da agenda política, corroída pela acelerada urbanização.
Outro fator a ser
considerado diz respeito às organizações que demandam reforma agrária,
responsáveis pelas pressões que ativaram esta recente "bolha"
redistributiva. O MST agoniza simultaneamente ao desaparecimento da reforma
agrária, a razão de seu nascimento. Não soube refundar-se nessa nova fase do
desenvolvimento agrário e vai se apagando melancolicamente.
Seu consolo é que
fará boa figura nos livros de História. E a Contag, poderosa em razão de sua
capilaridade, insiste na bandeira empurrada somente pela tradição. Seus
dirigentes sabem ser outro o maior desafio: tentar salvar da desistência os
milhares de pequenos produtores ameaçados pelo acirramento concorrencial
instalado no campo.
Uma outra razão a ser
considerada decorre do desempenho da agropecuária no mesmo período, o qual
inundou os mercados com volumes crescentes e, graças ao espetacular aumento da
produtividade, barateou os alimentos. Tal transformação eliminou o velho
argumento econômico da necessidade da reforma agrária e, se a população rural
mais pobre migrou para as cidades, igualmente a justificativa social deixou de
existir.
Mas há ainda um aspecto
decisivo: oferecer uma parcela de terra a famílias rurais não produz mais
nenhum efeito prático, apenas garante uma sobrevida temporária. Em nossos dias,
chegar à terra própria nada significa para os mais pobres do campo. Produzirá a
chance do autoconsumo ocasional, antes do abandono definitivo da terra, como
evidenciado na maioria dos assentamentos rurais.
De fato, trata-se de dura
vilania política, pois, enquanto a miséria no campo se esconde atrás das
muletas das políticas sociais, o governo federal coleta números destinados
meramente ao autoelogio.
Por tudo isso, a
reforma agrária brasileira concluiu o seu ciclo de vida. Do ponto de vista
econômico e produtivo, seu fracasso é assombroso, pois a área total dos assentamentos
é maior do que a área plantada de todos os cultivos nos demais estabelecimentos
rurais.
Mas, com surpresa, nada sabemos especificamente sobre a produção dos
assentamentos, enquanto a agricultura brasileira se tornou uma das mais
eficientes do mundo. É um confronto estatístico que desmoraliza qualquer defesa
de tal política. Persistir em sua continuidade, portanto, beira a completa
insanidade.
E o Incra e seu
gigantesco orçamento, tornado inútil sob tal desenvolvimento? O caminho lógico
seria a sua extinção, mas talvez fosse adequado transformá-lo num instituto de
terras que realizasse as "tarefas finais", como a definitiva
emancipação dos assentamentos, retirando a tutela do Estado, a regularização
fundiária ou a organização das ainda ficcionais estatísticas cadastrais que diz
compilar.
Já o Ministério do Desenvolvimento Agrário, preso à sua anacrônica
hibernação, mantém-se impassível ante a notícia acima e persevera em fantasias
para justificar o clamoroso desperdício de vultosos recursos públicos, na
tentativa de realizar o irrealizável. Ainda mais espantoso, tenta ressuscitar o
que já morreu. Resta saber se a autoridade maior do País terá a coragem de
finalizar este capítulo de nossa História.
Distintos são os
desafios atuais para criar prosperidade e oportunidades no campo. Requer
aceitar que a pobreza rural se resolverá, sobretudo, nas cidades e com outras
políticas. E também que não existem soluções exclusivamente agrícolas para
parte considerável dos estabelecimentos rurais de menor porte.
Portanto, é
preciso construir uma estratégia de desenvolvimento rural radicalmente
inovadora. Mas para isso é preciso primeiramente abrir as mentes, pois a
ortodoxia e a ideologização dominantes nos deixam sem rumo algum.
Enquanto
isso, afirmam-se o esvaziamento do campo e a incontrastável dominação da
agricultura de larga escala modernizada e integrada aos mercados mundiais.
Eis o nosso futuro
rural: uma fabulosa máquina de produção de riqueza, mas fortemente concentrada,
pois seria assentada num deserto demográfico.
*SOCIÓLOGO E PROFESSOR
APOSENTADO DA UFRGS. E-MAIL: Z.NAVARRO@UOL.COM.BR
O INCRA sim, se reinventou. Agora inventa "Comunidades quilombolas" por todo o Brasil para se manter ocupado e continuar recebendo verbas federais. Essa é a ocupação atual do INCRA, afinal, já que não consegue exercer mais a função para a qual foi criado. Quilombolas: o novo MST!
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