Produtividade e ideologia no campo
XICO GRAZIANO* - O Estado de S.Paulo
Recente relatório do Incra reascendeu uma discussão no debate
agrário: a necessidade, ou não, de atualizar os índices de produtividade no
campo. Elevá-los facilitaria a desapropriação de terras. Por outro lado,
avançaria sobre a produção rural. Entenda a polêmica.
A legislação básica do Estatuto da Terra
(1964) definia a existência de dois tipos de latifúndio: os "por
dimensão", grandes áreas acima de 600 módulos fiscais, e os "por
exploração", caracterizados como de baixa produtividade, independentemente
do seu tamanho. Em 1975, normatizando a matéria, o poder público estabeleceu
índices mínimos de produtividade física, regionalizados, para cada lavoura e
para as pastagens.
Na prática funcionava assim: o técnico do
Incra realizava as vistorias nos imóveis rurais suspeitos, verificava in loco o
nível existente de produtividade e elaborava seu laudo. Se a fazenda estivesse
produzindo acima dos índices oficiais, significava que ela era produtiva, em
acordo com a função social da propriedade; se ficasse abaixo, estaria
improdutiva, caracterizada como latifúndio e, portanto, destinada à reforma
agrária. Fácil.
A história, porém, não fica estacionada.
Aconteceu que a modernização da agropecuária se acelerou nos últimos 30 anos,
alterando completamente seu patamar produtivo, deixando para trás o atraso
oligárquico para assumir a dianteira da modernidade capitalista. Segundo a
Conab, entre 1976 e 2013 a produção nacional de grãos expandiu-se 306% (de 47
milhões para 191 milhões de toneladas), enquanto a área cultivada mostrou
acréscimo de 51% (de 37 milhões para 56 milhões de hectares). Conclusão: houve
uma extraordinária elevação da produtividade física da terra.
Ocorreu, também, decorrente da
Constituição de 1988, importante modificação legal: a antiga denominação de
"latifúndio" acabou substituída pela de "grande propriedade
improdutiva" e somente esta, devidamente comprovada, passou a ser passível
de desapropriação para fins de reforma agrária. Por ambas as razões, histórica
e jurídica, o latifúndio virou passado. Felizmente.
Mais tarde, a estabilização da economia
feriu gravemente o patrimonialismo oligárquico. A especulação fundiária cedeu
espaço à rentabilidade. Assim, no processo da reforma agrária brasileira,
começou a ficar difícil encontrar terras para serem desapropriadas, pois os
fazendeiros aprimoraram seu nível tecnológico e elevaram sua produtividade.
Nesse contexto, para manter a sanha do distributivismo agrário haveria só duas
alternativas: ou elevar os índices mínimos de produtividade, ou comprar as terras
pretendidas.
Predominou a saída da negociata:
crescentemente o governo federal passou a adquirir, por preço de mercado,
propriedades que, embora ostentando bons níveis de produtividade, foram
invadidas pelo MST e seus congêneres. Os dados oficiais comprovam o que pouca
gente sabe: dos 88,2 milhões de hectares incorporados aos assentamentos rurais
no Brasil, apenas 30,5 milhões (34,5%) foram obtidos por meio de decretos
desapropriatórios. O restante foi comprado pelo Incra. Essa tendência
mercantilista na reforma agrária se fortaleceu nos últimos anos, pois em 1994
as desapropriações dominavam 95,6% da arrecadação de terras.
Sim, a elevação dos índices mínimos de
produtividade poderia ter evitado esse negócio de compra e venda dentro da
reforma agrária, um procedimento sujeito a vastas falcatruas. Significaria, em
contrapartida, desprezar o bom senso da economia e chutar o balde da história.
Porque a saga do latifúndio seguiu outro trilho. Em vez de se submeter à
reforma agrária, subordinou-se ao capitalismo mais avançado, revolucionando sua
forma de produzir, inserindo-se no mundo dos agronegócios. Se o objetivo da
reforma agrária era aniquilar os antigos e ociosos latifúndios, para promover o
desenvolvimento, a evolução funcionou, embora se tenha mantido praticamente
inalterada a forte concentração fundiária trazida desde as capitanias
hereditárias. Custo da História.
Para o progresso do País, que se urbanizou
radicalmente, o resultado foi espetacular: o choque de capitalismo e a
modernidade tecnológica no campo permitiram que, em 2013, cada trabalhador
gastasse com a cesta básica de alimentos cerca de metade do valor, em preços
reais, que gastava em meados dos anos 1970. A sorte das metrópoles
não dependeu da reforma agrária.
Não se pode desprezar a realidade
empresarial. Na regra elementar, se o preço do milho, por exemplo, está baixo,
qual o comportamento esperado dos agentes econômicos: aumentar a produção do
cereal, e quebrar a cara, ou segurar o plantio, para se precaver? Ora, querer
obrigar os agricultores à elevação contínua da produção, sem garantia de preço,
significa uma insanidade. Afinal, quem arcaria com o prejuízo?
Faz bem o governo em buscar nova formula
para avaliar o desempenho produtivo das propriedades rurais. Quem defende
elevar os tais índices de produtividade esconde uma pegadinha: quer, na
verdade, continuar a rosca sem fim da reforma agrária, porque dela se alimentam
politicamente. Chega de ilusão. A área dos assentamentos rurais já supera em
25% o total da área plantada no Brasil.
A verdadeira discussão não reside na
obtenção de mais terra, o grande problema está em assegurar o caráter produtivo
da capenga reforma agrária já realizada. Bote-se o dedo na ferida: os índices
médios de produtividade dos assentamentos encontram-se abaixo dos verificados
na agricultura de 1975. Sanar essa absurda fraqueza deveria ser a prioridade da
reforma agrária. Qualidade, não quantidade. Fora disso, é mera luta ideológica.
Do século passado.
*AGRÔNOMO, FOI SECRETÁRIO DE AGRICULTURA E
SECRETÁRIO DO MEIO AMBIENTE DO ESTADO DE SÃO PAULO. E-MAIL: XICOGRAZIANO@TERRA.COM.BR
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