O papa e a Amazônia
Denis
Lerrer Rosenfield
A encíclica Laudato Si’,
do papa Francisco, dedicada a questões ambientais, também denominada Sobre o Cuidado da Casa Comum, entendida
esta como Criação, suscitou enorme reação, sobretudo favorável. Poucas foram as vozes críticas. Isso se
deve, principalmente, ao fato de o
ambientalismo ser hoje uma nova forma de ideologia, fortemente
compartilhada pela opinião pública, em especial nos centros urbanos.
Trata-se de documento que se dedica ao que chama de “ecologia
integral”, unindo questões propriamente
ambientais com questões morais, sociais, religiosas e econômicas. Significa
que, sob esse nome, o papa tem a
pretensão de oferecer toda uma nova concepção de mundo, que, no seu entender,
deveria passar a orientar a vida das pessoas em geral, independentemente de credos religiosos. Sua encíclica, então, não está voltada exclusivamente para os
católicos, mas para toda a humanidade, todos os habitantes da Terra. Mais
ainda, visa a que se estabeleçam formas
internacionais de controle de grandes empresas e países, a partir do
fortalecimento de organismos internacionais e de atuação de ONGs ambientalistas
e indigenistas.
O papa critica
fortemente as grandes empresas internacionais que estariam preocupadas só
em saquear os recursos naturais de regiões de grande biodiversidade como a
Amazônia, a bacia do Congo e os grandes lençóis freáticos e glaciares. Aliás, são as três únicas regiões do mundo
referidas no documento. Nesse sentido, ele seria contra a “internacionalização”
política dessas áreas do planeta. Aparentemente, ele seria contra a
internacionalização da Amazônia, entendida como uma forma de dominação de
grandes empresas e dos países mais desenvolvidos. A imprensa nacional tomou essa formulação pelo valor de face,
ressaltando o fato de o Santo Padre defender a soberania nacional, no caso
brasileiro, da Amazônia. Logo, o Brasil não teria com o que se preocupar. Uma leitura atenta do documento, contudo,
permite desvelar outra concepção.
A Amazônia, mais especificamente, é considerada um dos
grandes pulmões do planeta. É vital para o conjunto da Terra, enquanto Criação
divina, e para o futuro da humanidade. Ou seja, ela não pode ficar à mercê dos
grandes “interesses econômicos internacionais” — nem, poderíamos acrescentar, da soberania do Brasil, pois ela é, na verdade, um patrimônio
internacional, da humanidade, uma obra-mestra da Criação, foi Deus o seu
artífice.
Atentar contra a Amazônia significaria atentar contra um pulmão do mundo, talvez o mais
importante, e, teologicamente, contra a Criação. Isto é, moral e religiosamente o Brasil se veria destituído de soberania
sobre essa porção de seu território.
Em linguagem papal, “torna-se indispensável criar um sistema normativo que inclua limites invioláveis
e assegure a protecção dos ecossistemas, antes que as novas formas de poder
derivadas do paradigma tecno-económico acabem por arrasá-los não só com a
política, mas também com a liberdade e a justiça” (a ortografia é de português
de Portugal).
O novo sistema normativo,
moralmente fundado, passaria a ser exercido por organismos internacionais e
ONGs nacionais e internacionais, ambientalistas e indigenistas, que passariam a ditar o que pode ou não
ser feito neste enorme território nacional. A decisão última seria transferida
do Estado nacional para elas, contando,
internamente, com a participação ativa — e decisiva — da CNBB e de seus órgãos, como a CPT e a Cimi. Ou seja, um país como o Brasil poderia perder “religiosamente”,
“moralmente”, “ecologicamente” e “socialmente” a Amazônia, que passaria a ser controlada por essa nova espécie de
poder.
A construção da Usina de
Belo Monte e outras na Amazônia se tornariam inviáveis. Na perspectiva papal, os interlocutores privilegiados seriam os
indígenas e, principalmente, seus porta-vozes de ONGs e movimentos sociais,
pois deveria caber essencialmente às “populações aborígines” o cuidado da “Casa
Comum”. Não poderia um país decidir o que fazer com o pulmão do mundo, que seria,
moralmente e religiosamente, propriedade de todos os membros do planeta, da
Obra divina. O Brasil deveria,
realmente, abdicar de sua soberania.
Seguindo a linha dos
movimentos sociais, centra sua crítica no agronegócio em geral, principalmente na monocultura e
nas empresas proprietárias de grandes extensões de terra. Seu elogio reside no acolhimento da agricultura familiar, da pequena
propriedade e das populações aborígines. O “clamor da natureza” se
identificaria com o “clamor dos pobres”. Salientem-se igualmente suas constantes investidas contra o “lucro”
e o “egoísmo”. Sua concepção
está baseada numa relativização da propriedade
privada.
Há, portanto, nesse documento uma confluência de questões
ambientais, religiosas, morais e sociais, fazendo
dos porta-vozes dos pobres e de questões ambientais os verdadeiros
representantes de uma nova humanidade a ser construída. As ONGs ambientalistas e indigenistas são,
então, erigidas em novo poder mundial — entendido como se fosse uma espécie
de poder moral. Elas se estariam tornando uma espécie de novo Evangelho, como se suas concepções pudessem ser, de certa
maneira, identificadas como uma nova
forma de religiosidade universal. Isso é, elas passariam a ser um tipo de poder supranacional que contaria com o
beneplácito da Igreja, que as sustentaria nas críticas que recebem dos
países onde operam.
Os movimentos sociais de
esquerda e as ONGs ambientalistas e indigenistas nacionais e internacionais seriam, nessa
perspectiva, não apenas os representantes dessa nova humanidade, mas os interlocutores privilegiados do mundo
político em escala planetária. Teríamos, aqui, uma nova forma de poder
político, tido por moral em sua essência, que
não poderia ser limitado por nenhuma forma de poder nacional.
O Estado de S. Paulo, segunda-feira, 29 de junho de 2015
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