A produtora Roseli
Ruiz, presidente do sindicato rural de Antônio João, tornou-se a figura de
destaque do conflito que deixou um
indígena morto.
Foi na fazenda de seu cunhado,
vizinha a dela onde o conflito começou, que Semião Fernandes Vilhalva, de
24 anos, foi alvejado por um tiro no rosto depois
que um grupo de fazendeiros entrou na área para expulsar os guarani-kaiowá que reivindicam as terras.
Exaltada em reuniões e com a imprensa, ganhou fama de pouco amigável, algo que
ela faz questão de refutar citando ações assistenciais que executou ao longo
dos últimos anos com a comunidade indígena que reivindica sua fazenda.
Na última
sexta-feira, ela recebeu o EL PAÍS na sede da associação para uma entrevista.
Em alguns momentos, irritou-se com as perguntas, mas contou sua versão do
conflito.
Após o confronto, que ela narra em detalhes destacando a
"adrenalina" da "guerra", Ruiz retomou o controle de uma
casa em suas terras. Agora, diz que só sai de lá morta ou algemada.
Para ela,
os índios entraram em suas terras influenciados pelo Conselho Missionário Indigenista (CIMI), um
braço da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, órgão da Igreja Católica.
Diz ainda que a igreja está interessada no Aquífero Guarani, a megamanancial de
água doce. O CIMI nega as acusações e afirma, por sua vez, que há um “Estado
Paramilitar Ruralista” em Mato Grosso do Sul, formado para atacar os índios.
Paulista de São
Carlos, Roseli conheceu Pio Queiroz Silva quando cursava Serviço Social em
Ribeirão Preto. O marido herdou a fazenda Barra, onde criam gado, do pai Pio
Silva, acusado pelos índios de expulsá-los após comprar as terras do próprio
Governo do Estado, na década de 1950.
Segundo ela, não houve expulsão. Depois
da primeira retomada indígena em sua fazenda, em 1998, Roseli voltou para a
faculdade de direito e, depois, fez um curso de antropologia, além de uma pós
graduação em Arqueologia. Com isso, abriu uma empresa para fazer laudos
antropológicos de áreas em disputa.
Resposta. Há muitos
anos, uma família comprou uma grande área para fazer fazenda no
Paraguai. Eles precisavam tirar os índios de lá e doaram um pedaço
de terra. Nessa área, morava a família de um índio chamado Alziro Vilhalva, que
trabalhava em uma fazenda ao lado da nossa. Um dia, ele ganhou do dono da
fazenda uma área para viver mais perto do trabalho [que se tornou a Vila
Campestre]. Em 1970, foi criado o CIMI aqui e um antropólogo começou a visitar
os lugares onde tinha índio. Todo o lugar tinha índio. Os índios sempre
trabalharam na fronteira, sempre procuravam serviço nas fazendas, isso não é
novidade para ninguém.
P. E onde
moravam esses índios que trabalhavam aqui?
R. Vinham do Paraguai,
para procurar serviço.
P. Aqui no Brasil
não tinha?
R. Algum dia
teve índio, mas não sei se eram esses guarani-kaiowá. Todos esses [que
reivindicam a terra], desde quando a gente conhece a história, vieram de lá
[Paraguai]. Esse antropólogo começou a visitar as fazendas onde ele sabia que
tinha índio morando e começou a falar que eles tinham direito à terra, que
tinham que falar que o pai deles morava ali, que o tio morava ali. Um índio contou
tudo isso pra gente.
P. A relação até
aí era boa, então?
R. Eu era
conhecida como a Roseli dos índios! Um índio era picado de cobra
aqui, eu botava na minha camionete e levava para o hospital. Todo mundo sabe
dessa história. Desde que eu casei, Natal, Dia das Crianças e Páscoa, eu fazia
festa para eles. Eu tenho foto da minha filha pequena, vestida de Papai-Noel,
com a camionete cheia de brinquedo, distribuindo pros indinhos. A
gente distribuía lá, na Vila Campestre, e depois vinha para a cidade. To-do mun-do
sabe disso. Tem tudo registrado. Mas em 1998, dia 21 de dezembro, um índio
ligou pra gente e falou que ia ter invasão da nossa fazenda. A gente nunca
tinha ouvido falar de invasão e nem que índios queriam a nossa terra. Nós
éramos amigos deles, convivíamos na maior tranquilidade do mundo. Meu cunhado
Dacio tinha avião naquela época, sobrevoou o Campestre e viu a quantidade de
gente, de ônibus, chegando. Foi aí que começou. Nunca tinha tido nem discussão.
Foi o maior susto do mundo, foram entrando. Não tínhamos nem como levar os
peões todos. No dia seguinte, chegou a Polícia Federal, a Funai. Começou a negociação.
Só saio de lá
algemada ou morta. A casa é minha! Ou vocês acham que onde vocês moram não
tinha índio antes? Dá sua casa para eles!
P. O que
aconteceu?
R. O Governo
brasileiro começou a fazer um estudo antropológico. O
acordo é que os índios ficariam oito meses em um trecho da fazenda Cedro, da
irmã do meu marido. Mas isso já tem 17 anos. Eles nunca saíram dessa área.
Depois ampliaram para o vizinho, na fazenda Morro Alto.
P. Foi aí que a
relação piorou?
R. Eu continuei
ajudando. Construí uma escola para eles [na Vila Campestre]. Até que um dia meu
marido foi atacado por um índio (mostra a foto dele ensanguentado). Olha, eu
sou briguenta, eu grito, eu falo... Mas meu marido, você pergunta para todo
mundo, é uma pessoa calma, ponderada, um homem que não encrenca com ninguém,
não briga. Uma pessoa excelente. Nesse dia, eu falei: chega! Não tem mais
amizade. Mas, há quatro anos, me disseram que tinha chegado um pessoal com
outra cabeça, mais estudado, que queria conversar. E vieram. Nos últimos quatro
anos vivemos em paz. Assumi o sindicato, trouxemos
cursos para eles. Temos um ônibus para tratamento dentário, eu mandava buscar
na aldeia. Tudo sempre do jeitinho que eles quiseram. Montei até uma
cooperativa para eles.
P. E por que a
senhora fazia isso?
R. Eu não
comecei a ajudá-los quando eles invadiram. Desde que casei, eu queria conhecer
os índios. Contei que desde o começo da história que eu fazia Natal, Ano
Novo... Eu gostava. Sem interesse nenhum! Eles lá naquela pobreza. A ausência total do Estado. Aqui em Antônio
João, você pode sair e ver quantas pessoas eu levei para operar, para hospital.
Eu faço porque eu tenho facilidade, gosto. Não sei porque as pessoas acham que
a gente só faz as coisas por interesse. Mas é claro. Não vou dizer para você que
não tenho interesse de conviver pacificamente. Agora, pergunta quantos [deles]
que têm interesse de viver pacificamente?
P. E como foi
esse último conflito?
R. Na
segunda-feira, dia 17, começou um curso lá na aldeia de cultivo de mandioca a
pedido dos caciques. Quando cheguei de camionete, vi um coordenador do CIMI na
aldeia. Na quarta-feira, perto da hora do almoço tocou o telefone e
um cacique me ligou, falou que todos os caciques tinham sido destituídos e que
eles iam invadir. Destituíram até a Polícia Indígena, um grupo que eles
formaram para fazer a segurança da aldeia e que a gente dava uma ajuda de
custo.
P. Mas o CIMI tem
poder de destituir algum cacique?
R. Eles mandam!
P. Mas o que
aconteceu em seguida?
R. Um cacique
ligou e avisou que já estavam descendo. Peguei duas pessoas aqui, pedi para
irem comigo até a fazenda. Passei no Campestre, entrei na escola e perguntei
para um cacique se eles iam mesmo invadir minha propriedade. Ele não disse nem
sim nem não. Falei: ‘eu sou amiga de vocês, mas sei ser inimiga’. Eu sempre
falava que se entrassem na minha casa de novo, eu morreria, mas mataria uns 20.
Mas eu nem tenho revólver, nem tenho arma na fazenda. Dessa vez, falei o
contrário. Falei que não ia fazer nada, que ia sair da fazenda e ficar
assistindo até onde ia a coragem deles de fazerem isso comigo. Aí já colocaram
na internet que eu ia matar os índios.
P. Mas não
entraram nessa noite na sua fazenda.
O que a Igreja
Católica quer? O que eles querem aqui é a água. Aqui tem o Aquífero Guarani e a prospecção é muito
fácil
R. Recebi um
telefonema dizendo que eles não iam entrar porque eu tinha ameaçado e que eles
estavam com medo. Disseram que iam entrar na fazenda Primavera. E entraram.
Sempre tem um lá dentro que informa a gente, um coitado que tem um celular e
que precisa de dinheiro que informa, vende foto, faz tudo. Bom, dias depois
inventaram de invadir as três fazendas da família do meu marido. É igualzinho
ao morro do Rio de Janeiro: a maioria é gente boa, mas tem
meia dúzia de bandido que leva a massa que não tem opção.
P. E como
aconteceu o confronto no sábado, na retomada da sua casa?
R. Na sexta,
teve uma reunião em Campo Grande sobre a questão. Todos os sindicatos rurais
foram. Eu tinha marcado uma reunião aqui no sábado e eles vieram para cá.
Estava o senador Moka [PMDB], o deputado [federal Luiz Henrique] Mandetta
[DEM], a deputada [federal] Tereza Cristina [PSB]... Contei o que tinha
acontecido, que minha vida virou de pernas para o alto. E falei que eu voltaria
para a minha casa porque estava de saco cheio. Peguei a camionete e saí.
Começou a sair todo mundo atrás. Fui na minha casa e entrei. Entrei como? Por favor, saiam daí? Não. Foi luta mesmo,
corporal, todo mundo com pau na mão. Estamos cheios de produtor
rural marcado. E aí eu tomei conta da minha casa e estou lá. E só saio de lá
algemada ou morta. A casa é minha! Aquilo é minha vida. Nós compramos, pagamos
e eu perdi minha juventude ali. Ou vocês acham que onde vocês moram não tinha
índio antes? Dá sua casa para eles!
P. Então não
houve algo planejado, de todos saírem juntos para as fazendas?
R. Não! Foi um
susto. Eu só pensei nisso na hora que eu fui subir ali. Me deu um clique e eu
falei: "Eu vou embora pra minha casa, não vou ficar aqui". Eles me
seguiram.
P. Alguém de vocês
estava armado?
R. Eu não sei.
Estão falando que tinha arma. Eu não vi arma.
P. A gente viu
alguns indígenas com uma marca no corpo, que parecem de bala de borracha.
Alguém carregava isso?
R. Eu não sei.
Eu não estava armada. Ninguém da minha família estava armado. Estava Ricardo
Bacha, que foi candidato ao Governo do Estado, com a mulher. Estava a doutora
Aldinha, que é irmã do ex-presidente da Famasul (associação dos produtores
rurais do estado). Estava a dra. Miriam, essa que discutiu com o
ministro na reunião (ministro da Justiça, que se reuniu com produtores por
causa do conflito), que é médica e tem a irmã que trabalha na Receita Federal.
Um monte de mulher! Você acha que o meu marido e esses homens seriam irresponsáveis
a ponto de chamar para ir para lá com arma onde tinha um monte de mulher? Tinha
mais de sessenta camionetes atrás. Eu nunca pensei num negócio desses, eu nunca
imaginei. E fomos lá juntos, não fomos para matar ninguém, não! Nós chegamos e
já entramos na varanda. Foi tabefe para todo lado, eles não esperavam.
P. Quantos
índios eram?
R. Menina, você
precisa ir para uma guerra para ver a adrenalina que é. Você não vê nada! E
você se agiganta. É uma coisa impressionante, você não tem medo. Foi aquela
luta corporal ali.
P. E como o
indígena Semião morreu?
R. Eu não sei,
não estava lá.
P. Você acusou o
CIMI de estimular as invasões. Por quê?
R. Vamos buscar
na história, como a Igreja Católica começou. O que eles querem? Eles querem as
nossas riquezas! A maior riqueza que nós temos! Há 16 anos eu já estudava o
porquê de tanto interesse internacional, dava as palestras e falavam que eu era
louca. Eu dizia que o que eles querem aqui é a água. Aqui tem o Aquífero Guarani e a prospecção é muito
fácil.
P. Então a
senhora acha que há um complô do Vaticano por causa do Aquífero Guarani?
R. Não é só do Vaticano.
A Inglaterra... Você sabia que quando foi demarcar a Raposa Serra do Sol o Charles esteve no
Brasil?
P. Quem?
conflito vem rios de dinheiro do
exterior
R. O príncipe
Charles! E sem comunicar oficialmente o Governo brasileiro. Vai também achar
que eu sou louca... Você é jovem, vai estudar um pouco de história que vai ver
os interesses da Igreja desde que o mundo é mundo. Eles querem as nossas
riquezas. Porque se eles quisessem melhorar a vida desses índios, onde
conseguiram demarcar eles não estavam nessa miséria. Vai lá em Roraima! Andei
tudo lá, tenho cliente lá.
P. Mas você não
acha que o Governo brasileiro agiria para evitar isso?
R. Ah, vai! Olha os yanomami! Aquilo está virando um país! A
grande meta deles é fazer uma colcha de retalhos. Você não sabe que os yanomami
estão na ONU com o processo de independência avançado? Aqui eles querem fazer
uma grande nação Guarani.
P. Querem a
independência do Brasil?
R. Sim! Igual o
Rio Grande do Sul já quis ser independente. Mesma coisa. Começaram isso em 1970
e estão avançando. Eles [igreja] vão acabar com todos esses índios!
P. O ministro da
Justiça veio aqui e falou que teria uma negociação.
R. Há dois anos, o mesmo Governo
fez a mesma promessa quando botaram fogo lá em Sidrolândia. Foram dois anos de negociação.
Mentiras, mentiras, mentiras. Estão sem credibilidade. Falando que vai fazer...
Quando? Que horas? De que jeito? O governo, se quisesse, já tinha feito. Existe
uma indústria do conflito. Cada vez que tem um conflito vem rios de dinheiro do
exterior.
DAVID MAJELLA - EL PAÍS
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