Esposa, mãe, católica
e marqueteira
Péricles Capanema
Kellyanne Conway foi lançada em 2016 no
centro da política norte-americana. Nascida em 1967, católica, títulos
universitários prestigiosos, é casada com advogado conhecido e mãe de quatro
filhos. Na vida profissional, marqueteira consagrada.
Seu (até agora) grande feito foi ser a
primeira mulher a chefiar uma campanha presidencial nos Estados Unidos. A
partir de 17 de agosto último, perspectivas nada alentadoras, assumiu o bastão
e mudou o rumo dela, conseguindo para Donald Trump consagradora vitória no Colégio
Eleitoral.
Atualmente é conselheira presidencial, lá posição de topo. Tem mais:
vem sendo jocosamente apelidada de whisperer para indicar que
tem os ouvidos de Donald Trump. Logo estará na lista das mulheres mais
poderosas dos Estados Unidos.
Em Washington, 27 de janeiro último,
foi realizada a 44ª Marcha pela Vida, protesto pela aprovação do aborto em 1973
pela Suprema Corte (caso Roe versus Wade).
A manifestação recebeu estímulo público de Trump: “A Marcha pela Vida é muito
importante. Para todos os que estão se manifestando, meu inteiro apoio”.
Nela
discursou o vice-presidente Mike Pence, que “em nome do Presidente” deu as
boas-vindas aos participantes. E aí discursou ainda Kellyanne Conway, começando
assim: “Sou uma esposa, uma mãe, uma católica, conselheira do presidente dos
Estados Unidos”.
Tais palavras
estilhaçam o politicamente correto (entre nós, não entre eles). Não custa
lembrar, meses atrás a revista Veja (18.4.2016) em reportagem sobre a atual
primeira-dama Marcela Temer pôs no título: “bela, recatada e do lar”. Foi um
deus nos acuda. Ironias, deboches, ataques, insultos encheram as páginas da
imprensa tradicional e das redes sociais.
O que respigo abaixo é apenas pequeno
exemplo das centenas de milhares de manifestações. Diana Corso, psicanalista e
escritora: “Acho que a pobre Marcela acabou carregando o ônus da onda de
retrocesso. A existência dessa mulher nos coloca frente àquilo que temos lutado
para não mais ter que ser”. Cláudia Tajes, escritora: “Não haveria nada de
errado com a descrição se ela estivesse nas páginas de uma revista no início do
século passado.
Um mundo que só fala de empoderamento feminino e seus derivados
só pode debochar ao ver uma guria de 30 anos ser retratada desse jeito. Coitada
dela”. Nana Soares, jornalista: “Esta manchete parou no século 19. Estamos no
século 21”. E vai por aí afora.
Nos Estados Unidos,
comentários desse naipe são anacrônicos. Kellyanne Conway, ao destacar como
características que especialmente preza seu papel de esposa e mãe e sua condição
de católica, só a seguir lembrando que ocupa um dos mais poderosos cargos na
Terra, tem inteira consciência que tal enumeração a faz simpática no pais
inteiro e a fortalece na Casa Branca.
Por quê? Existiu nos
Estados Unidos, décadas a fio, um enorme setor a bem dizer invisível. Oculto,
um verdadeiro país conservador, vivendo em torno da família e do trabalho.
A
imagem dos Estados Unidos era outra, projetada pelos holofotes de Hollywood e
pela fanfarronice emproada dos setores liberals (o que lá
significa ter pelo menos propensões esquerdistas e libertárias), que gostam de
monopolizar microfones.
Impostura gigantesca, mandava e desmandava. Até que em
certa hora o país majoritário de cansou do cabresto e da asfixia. Organizou-se,
buscou participação nas universidades, presença nos meios de comunicação,
influir na política.
Enfrentou obstáculos sem nome, mas obteve também êxitos
retumbantes, um dos quais foi o período Reagan de oito anos. As refregas
continuam, polarizam a nação. Em suma, movimentos conservadores fizeram com que
o país invisível tomasse consciência de si, opinasse e finalmente se afirmasse
como parte influente, com direito a vez, voz e voto.
O acontecimento faz
lembrar a lenda bretã da “cathédrale engloutie” (catedral submersa,
engolida pelas águas), nas costas da ilha de Ys. Em certas ocasiões os
habitantes da região escutam badalar de sinos e ouvem cantos sagrados. Quando a
água está muito transparente lhe vêm os contornos. A ação lucida de lideranças
responsáveis fez emergir das águas a catedral do país conservador nos Estados
Unidos.
Temos também entre nós
um Brasil invisível, desprezado, a cuja voz poucos atentam e sem consciência de
que pode ditar rumos, caso aflore. É uma catedral, cujos sinos bimbalham,
clamando por vir à tona.
O Brasil foi colocado entre os países emergentes (com Rússia,
Índia, China, África do Sul, o grupo BRICS). Antes, temos para fazer emergência
mais urgente. Conscientizar, empoderar (já empregando o neologismo) grandes
multidões, é falar, libertar setores agora sufocados.
Quando o Brasil, abaixo
da linha da água, hoje invisível, se afirmar na proporção correta, será
completamente normal uma mulher de grande expressão, no meio de aplausos,
proclamar-se ufana esposa, mãe e católica. Como acontece nos Estados Unidos.
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