Péricles Capanema
Sublinhada pelo
encontro dos corpos soterrados na lama e pelo escoar lento do Paraopeba tóxico,
a tragédia em Brumadinho lembra doloridamente ao Brasil enlutado a necessidade
contínua de medidas de prevenção, de nada deixar ao acaso, de ter sempre diante
dos olhos a possibilidade pior. Em suma, retirar de cada fato ou princípio, até
o fim, suas decorrências lógicas e agir segundo elas; é criar o hábito da responsabilidade.
Nosso hábito é outro,
namoramos o desleixo, a imprevidência, a inconsequência, brincamos inconsideradamente
com a lógica. Tudo leva a crer, Brumadinho, encaixada no contexto de Mariana,
boate Kiss, alojamento do Flamengo, incêndio no Museu Nacional, é prenúncio de
outras tragédias.
No âmago da catástrofe,
repito, está o hábito de nada levar até suas últimas consequências lógicas. Vou
dar um exemplo gritante, relacionado com o que acima comentei. Muita gente,
qual urubu na carniça, aproveitou-se de a Vale (antiga Vale do Rio Doce) estar
no miolo do drama que desabou sobre Brumadinho, para criticar a privatização da
empresa, e por ricochete, a política de privatização em geral. O novo rumo
teria diminuído preocupações sociais e cuidados com o meio ambiente.
Prejudicaria o povo, favoreceria os ricos; em suma, seria antissocial.
Vamos devagar,
começando por recordar alguns marcos, o que poderá evitar que muita gente
continue saudosa do atraso e agarrada nos enredos do retrocesso. A Vale (antiga
Vale do Rio Doce), criada empresa estatal em 1942 por Getúlio Vargas, foi
privatizada em maio de 1997 durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Em
números redondos, é empresa privada há 22 anos, uma vida. Quem manda em empresa
privada são os acionistas. Certo? Na Vale, em termos. Acionistas, sim, grandes,
mas não privados.
Trago à baila trechos da delação de Joesley
Batista, um dos donos do grupo JBS, que não é grande acionista da Vale, divulgada
em maio de 2017. Em conversa com o megaempresário, o então senador Aécio Neves
lhe garantiu que já não conseguiria nomear o presidente da Vale (desejo dele),
mas Joesley Batista poderia indicar um outro diretor e seria atendido. A contrapartida
eram os dois milhões de reais na mão para, afirmava o senador, pagar despesas
de advogado.
Coisa de comparsas, Joesley Batista,
hoje condenado, teria garantido até 40 milhões se conseguisse sentar alguém de
sua confiança na presidência da Vale. Palavras de Joesley Batista constantes do
material da delação: “Aí ele [Aécio] falou, ‘não pode porque eu já nomeei’.
Parece que a Vale tem uma governança pra ter uma independência pra escolher
presidente, mas parece que eles têm algum jeito de fraudar esse troço e virar
presidente alguém com nomeação política. Ele [Aécio] me explicou isso, disse
'nós fizemos um treco lá que em tese é independente, mas na prática o candidato
da gente acaba ganhando’. Ele disse que eu poderia escolher qualquer uma das
quatro diretorias, que eu escolhesse e que ele botava quem eu quisesse, se
fosse o Dida, ele botava o Dida". O Dida é Aldemir Bendine, hoje condenado
e preso por corrupção.
Lauro Jardim, cerca de dois meses
antes da divulgação do material acima, já informava que a escolha do presidente
da Vale vinha de “uma triangulação da qual
participaram os acionistas (Bradesco à frente), Michel Temer e Aécio Neves.
Quando oficialmente a Vale contratou a Spencer Stuart para encontrar o nome do
sucessor de Ferreira, foram agregados pela empresa duas dezenas de nomes aos de
Schvartsman”
Fundos de pensão de estatais e BNDES
(controlados pelo governo) são grandes acionistas da Vale. O que dá aos
políticos enorme ingerência na empresa. A coerência da política de
privatizações mandaria o governo entregar a empresa à iniciativa privada. Não o
fez; saiu pela porta da frente e entrou pela porta dos fundos. E a situação geradora
de lambanças está assim há mais de vinte anos.
Existe pior. Boa
parte das empresas privatizadas depois de 1997 hoje se encontra nas mãos de
estatais chinesas (ou, por outra, nas mãos do Partido Comunista Chinês) e
também nas mãos de estatais de países ocidentais.
Vai abaixo o que divulguei
em dezembro de 2015, ainda no governo Dilma, no artigo “Desnacionalização
suicida”, vale para hoje, espero que não valha no futuro: “Nunca fui nacionalista; vejo com
simpatia a presença de empresas estrangeiras entre nós. Mas o caso agora é
outro. Em 25 de novembro último, o governo colocou à venda concessões por 30
anos para as usinas de Ilha Solteira, Jupiá, Três Marias, Salto Grande, vinte e
nove hidrelétricas no total. Ganharam o leilão CEMIG (estatal), COPEL
(estatal), CELG (estatal), CELESC (estatal), ENEL (forte presença do governo
italiano) e THREE GORGES (estatal chinesa). A estatal chinesa ficou com 80% da
energia e pagou R$13,8 bilhões pela outorga. Vejam esta falácia lida por
milhares, quem sabe milhões, ilustra como os meios de divulgação vêm tratando o
caso: ‘Com os ativos recém-adquiridos,
a CTG [China Three Gorges, a estatal chinesa] atinge capacidade instalada de
6.000 W, tornando-se a segunda maior geradora privada do país’”.
Privada? Capitais do Estado chinês,
dirigido tiranicamente por um partido imperialista e totalitário. Temos no caso
estatismo agravado, mais danoso que o estatismo brasileiro, com suas
roubalheiras e incompetências. A dizer verdade, o programa de desestatização
brasileiro, em vários de seus aspectos importantes, é uma enganação monstruosa
e vergonhosa. Chega até a ameaçar a segurança nacional.
Fecho. A irresponsabilidade tem raiz
na falta de lógica, no hábito de conviver com a incoerência. Agora vitimou
Brumadinho. Antes, causou outras desgraças. No futuro, provocará tragédias
parecidas. Se não forem expulsas a incoerência e a ilogicidade, alimentadoras
do descaso, do desleixo e da irresponsabilidade.
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