Em defesa da
agricultura: vamos comer o quê?
O fato,
provado por fotografias, é que poucos países conseguem tirar tanto da terra e
interferir tão pouco na natureza ao redor dela quanto o Brasil
Por J.R.
Guzzo
1 set 2017,
06h00
A regra é
antiga: se você quer fazer uma pessoa feliz com as próprias opiniões, nunca
apresente a ela dois lados para uma questão. Apresente um lado só — ou, melhor
ainda, não apresente nenhum. Nada é mais cômodo do que viver convencido de que
certas coisas não podem ser discutidas, pois são a verdade em estado
definitivo.
É o que está acontecendo hoje com a questão ambiental pelo mundo
afora — especialmente no Brasil, que teve o destino de ser sorteado com 8,5
milhões de quilômetros quadrados de território com exuberância ambiental. Ficou
decidido pela opinião pública internacional e nacional que o Brasil destrói
cada vez mais as suas florestas — por culpa direta da agricultura e da
pecuária, é claro.
Terra que gera riqueza, renda e imposto é o inferno. Terra
que não produz nada é o paraíso. Fim de conversa. Os fatos mostram o contrário,
mas e daí? Quanto menos fatos alguém tem a seu favor, mais fortes ficam as suas
opiniões.
As coisas
estão deste jeito há anos — há apenas uma ideia em circulação, e essa ideia
está errada. O resultado direto é a falsificação de alto a baixo de todo o
debate sobre desmatamento e cultivo do solo no país.
Ninguém poderia imaginar,
pelo que se vê e lê todos os dias, que a área de matas preservadas no Brasil é
mais do que o dobro da média mundial. Nenhum país do mundo tem tantas florestas
quanto o Brasil — mais que a Rússia, que tem o dobro do seu tamanho, e mais que
Canadá e Estados Unidos juntos. Só o Parque Estadual da Serra do Mar, em São
Paulo, é duas vezes maior que a maior floresta primária da Europa, na Polônia.
Mais que tudo isso, a agricultura brasileira ocupa apenas 10%, se tanto, de
todo o território nacional — e produz mais, hoje, do que produziu nos últimos
500 anos. Não cresce porque destrói a mata. Cresce por causa da tecnologia, da
irrigação, do maquinário de ponta. Cresce pela competência de quem trabalha nela.
Como a
agricultura poderia estar ameaçando as florestas se a área que cultiva cobre só
10% do país — ou tanto quanto as terras reservadas para os assentamentos da
reforma agrária? Mais: os produtores conservam dentro de suas propriedades, sem
nenhum subsídio do governo, áreas de vegetação nativa que equivalem a 20% da
superfície total do Brasil. Não faz nenhum sentido.
Não se trata, aqui, de
dados da “bancada ruralista” — foram levantados, computados e atualizados pela
Embrapa, com base no Cadastro Ambiental Rural, durante o governo de Dilma
Rousseff. São mapas que resultam de fotos feitas por satélite. Pegam áreas de
mata a partir de 1 000 metros quadrados; são cada vez mais precisos. São também
obrigatórios — os donos não podem vender suas terras se não estiverem com o
mapeamento e o cadastro ambiental em ordem.
Do resto do território, cerca de
20% ficam com a pecuária, e o que sobra não pode ser tocado. Além das áreas de
assentamentos, são parques e florestas sob controle do poder público, terras
indígenas, áreas privadas onde é proibido desmatar etc. Resumo da ópera: mais
de dois terços de toda a terra existente no Brasil são “áreas de preservação”.
O fato,
provado por fotografias, é que poucos países do mundo conseguem tirar tanto da
terra e interferir tão pouco na natureza ao redor dela quanto o Brasil.
Utilizando apenas um décimo do território, a agricultura brasileira de hoje é
provavelmente o maior sucesso jamais registrado na história econômica do país.
A última safra de grãos chegou a cerca de 240 milhões de toneladas — oito vezes
mais que os 30 milhões colhidos 45 anos atrás. Cada safra dá para alimentar
cinco vezes a população brasileira; nossa agricultura produz, em um ano só, o
suficiente para 1 bilhão de pessoas.
É o que se chama “segurança alimentar”,
que não existe no Japão, na China ou na Inglaterra, por exemplo — para não
falar da África e outros fins de mundo onde há fome permanente, e para os quais
as sociedades civilizadas recomendam dar esmolas.
O Brasil,
que até 1970 era um fazendão primitivo que só conseguia produzir café, é hoje o
maior exportador mundial de soja, açúcar, suco de laranja, carne, frango — além
do próprio café. É o segundo maior em milho e está nas cinco primeiras posições
em diversos outros produtos.
O cálculo do índice de inflação teve de ser mudado
para refletir a queda no custo da alimentação no orçamento familiar, resultado
direto do aumento na produção. A produtividade da soja brasileira é equivalente
à dos Estados Unidos; são as campeãs mundiais.
Mais de 60% dos cereais
brasileiros, graças a máquinas modernas e a tecnologias de tratamento do solo,
são cultivados atualmente pelo sistema de “plantio direto”, que reduz o uso de
fertilizantes químicos, permite uma vasta economia no consumo de óleo diesel e
resulta no contrário do que nos acusam dia e noite — diminui a emissão de
carbono que causa tantas neuroses no Primeiro Mundo.
Tudo isso parece uma
solução, mas no Brasil é um problema. Os países ricos defendem ferozmente seus
agricultores. Mas acham, com o apoio das nossas classes artísticas,
intelectuais, ambientais etc., que aqui eles são bandidos.
A
consequência é que o brasileiro aprendeu a apanhar de graça. Veja-se o caso
recente do presidente Michel Temer — submeteu-se à humilhação de ouvir um pito
dado em público por uma primeira-ministra da Noruega, pela destruição das
florestas no Brasil, e não foi capaz de citar os fatos mencionados acima para
defender o país que preside.
Não citou porque não sabia, como não sabem a
primeira-ministra e a imensa maioria dos próprios brasileiros. Ninguém, aí,
está interessado em informação. Em matéria de Amazônia, “sustentabilidade” e o
mundo verde em geral, prefere-se acreditar em Gisele Bündchen ou alguma artista
de novela que não saberia dizer a diferença entre o Rio Xingu e a Serra da
Mantiqueira. É automático. “Estrangeiro bateu no Brasil, nesse negócio de
ecologia? Só pode ter razão. Desculpe, buana.”
Nada explica
melhor esse estado de desordem mental do que a organização “Farms Here, Forests
There”, atualmente um dos mais ativos e poderosos lobbies na defesa dos
interesses da agricultura americana e do universo de negócios ligado a ela.
Não
tiveram nem sequer a preocupação de adotar um nome menos agressivo — e também
não parecem preocupados em dar alguma coerência à sua missão de defender
“fazendas aqui, florestas lá”. Sustentam com dinheiro e influência política os
Greenpeaces deste mundo, inclusive no Brasil.
Seu objetivo é claro. A
agricultura e a pecuária devem ser atividades privativas dos países ricos — ou
então dos mais miseráveis, que jamais lhes farão concorrência e devem ser
estimulados a manter uma agricultura “familiar” ou de subsistência, com dois
pés de mandioca e uma bananeira, como querem os bispos da CNBB e os inimigos do
“agronegócio”. Fundões como o Brasil não têm direito a criar progresso na
terra.
Devem limitar-se a ter florestas, não disputar mercados e não perturbar
a tranquilidade moral das nações civilizadas, ecológicas e sustentáveis. E os
brasileiros — vão comer o quê? Talvez estejam nos aconselhando, como Maria
Antonieta na lenda dos brioches: “Comam açaí”.
* J.R. Guzzo
é colunista de VEJA
http://veja.abril.com.br/revista-veja/em-de
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