O STF e a extinção
dos pequenos agricultores
Se os artigos 59 e 67
do Código Florestal forem declarados ilegais será um desastre
Evaristo de Miranda,
Se existe uma espécie ameaçada de
extinção no Brasil, são os pequenos agricultores. Uma espada paira sobre a
cabeça de mais de 4,5 milhões de produtores familiares: a possível declaração
de inconstitucionalidade dos artigos 59 e 67 do Código Florestal pelo STF.
A legislação define como pequeno
agricultor aquele que possua até quatro módulos fiscais. O tamanho do módulo é
definido por município e varia. O menor valor é de cinco hectares. Muitos
produtores possuem apenas um módulo fiscal, e até menos. É assim nas áreas
irrigadas do Nordeste, nos mais de 9.300 assentamentos de reforma agrária e em
diversas regiões de minifúndios.
No último censo havia 4.594.785
pequenos proprietários. Esse número correspondia a 89% dos estabelecimentos
agropecuários do Brasil. Eles ocupavam somente 11% do território nacional e
contribuíam com 50% do valor da produção agropecuária.
Os pequenos agricultores exploram a
quase totalidade de suas terras para poderem manter suas famílias. Por não
terem, individualmente, grande volume de produção, não têm poder de barganha:
compram caro os insumos agrícolas e vendem barato a sua produção.
Pela legislação recente, grande parte
deles ocupa áreas de preservação permanente (APPs). Plantam café e criam gado
leiteiro nas encostas da Serra da Mantiqueira e em outras áreas de relevo em
todo o País; cultivam bananeiras no Vale do Ribeira (SP), parreiras e macieiras
na Região Serrana de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul e ocupam, aos
milhares, pequenas faixas de terra ao longo do Rio São Francisco, no semiárido
nordestino, como os ribeirinhos o fazem, em toda a Bacia Amazônica. Todo o
Pantanal é APP, assim como a Ilha do Marajó e todas as ilhas fluviais.
O Código Florestal não isentou os
pequenos agricultores de manter APPs. Mas o artigo 67 limitou o tamanho da
reserva legal à área existente com vegetação nativa nos imóveis em 22 de julho
de 2008. Se ela representava 10% da superfície, esse número seria mantido. Se
fosse 5%, também. Idem se fosse apenas uma árvore. Eles estavam isentos de
recompor a reserva legal em 20% ou até 80% da área de seus imóveis, conforme o
bioma.
Caso o artigo 67 seja declarado
inconstitucional, milhões de famílias rurais terão sua atividade produtiva
inviabilizada pela redução da área explorada em seus imóveis, já limitadíssima.
Os pequenos se tornarão microprodutores, categoria que só é viável na
semântica. Eles não pagam suas contas com bitcoins, mas
com breadcoins.
Além da perda de área para vegetação
nativa, eles ainda teriam de arcar com os custos da recomposição. E pagar
multas. Antes do código, medidas provisórias, que viraram lei sem nunca terem
sido votadas, obrigavam os produtores a recompor a reserva legal. Mesmo se a
área tivesse sido desmatada nos séculos passados. Os pequenos, vítimas desse
anacronismo legislativo, foram notificados de múltiplas infrações ambientais
que eram simplesmente o resultado de um processo histórico e o retrato de sua
situação social.
Apesar dessas dificuldades, muitos se
profissionalizaram, adotaram novas tecnologias e sistemas de produção
diferenciados, como a agricultura orgânica. E contribuem na agropecuária não
apenas com frutas e hortaliças, mas também com soja, café, flores, celulose e
até cana-de-açúcar.
O Cadastro Ambiental Rural, fruto do
Código Florestal, atesta: 91% dos cerca de 4,5 milhões de cadastrados até
janeiro têm menos de quatro módulos fiscais. Muitos não têm sequer energia
elétrica, mas cumpriram o acordado: realizaram seu cadastro digital. Apontaram
em mapas e imagens de satélite sua situação real para transformar eventuais
irregularidades ou sanções (anteriores a 22 de julho de 2008) em serviços
ambientais, como prevê o artigo 59. Todos os milhões de cadastrados assim
procederam.
Se o artigo 59 for declarado
inconstitucional, não haverá Programa de Regularização Ambiental. Pior ainda, o
cadastro ambiental rural será usado imediatamente contra os produtores. As
multas serão produzidas aos milhões, por computador, automaticamente, e
notificadas por e-mail. Um esboço desse esquema de notificação já foi testado
em 2017. A máquina de moer carne digital está pronta e azeitada, financiada
por fundos estrangeiros, para devolver em sanções o que os produtores
depositaram em confiança na lei.
Para o ministro Dias Toffoli, o
estabelecimento de um marco temporal não significa que o dano ambiental antes
daquela data não será recomposto: “Ao contrário, define que danos causados em
afronta à lei ambiental após esse marco são passíveis de multa e
criminalização”. Revogar esse trecho da legislação causará enorme insegurança
jurídica, após ter sido praticado por quase seis anos. “O Estado diz para o
cidadão: aja de tal sorte que terá um benefício. O cidadão age como a lei
orientou e, depois, o Estado vai lá e diz: não, você é um criminoso”, resumiu.
O Código Florestal foi aprovado por ampla
maioria no Congresso. “Pela teoria do Direito Constitucional, na dúvida da
constitucionalidade temos que privilegiar a legalidade da lei, neste caso, mais
ainda, porque não podemos esquecer o amplo debate feito no parlamento”,
defendeu Toffoli.
Se os artigos 59 e 67 forem declarados
inconstitucionais pelo Supremo Tribunal, centenas de milhares de pequenos
agricultores abandonarão a atividade produtiva e venderão seus imóveis para
grandes produtores. Ou para cidadãos urbanos, que os transformarão em sítios de
lazer, reflorestados. Esses compradores, sim, poderão arcar com essas despesas
e exigências legais.
Será um desastre para os pequenos
agricultores. Produzirá um feito inédito: uma enorme reforma agrária às
avessas. E promoverá a tão almejada “desantropização da Amazônia e de outros
biomas”, defendida por certos movimentos ambientalistas que cospem no prato
onde comem.
Ab auditione mala non timebit.
*Agrônomo, doutor em ecologia, é
pesquisador da Embrapa
Fonte: O Estado de São Paulo, 26
Fevereiro 2018
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