segunda-feira, 13 de abril de 2015

DEZ LEIS MUITO SIMPLES



DEZ LEIS MUITO SIMPLES

Jacinto Flecha

         Minha má memória foi um sério obstáculo na escolha da atividade profissional, e tenho me defendido contra esta deficiência procurando entender bem o conteúdo, sem decorar as formulações (Entenda bem as regras, depois esqueça-as). 

Nunca eu conseguiria, por exemplo, ser ator de teatro, pois decorar textos longos estava fora de cogitação. Eu não os repetiria com as mesmas palavras, e os chamados “cacos” desnorteariam quem contracenasse comigo. Excluí liminarmente a advocacia: Como decorar mais de quatro milhões de leis, normas, regulamentos, portarias, etc., que a atividade legiferante produziu nos últimos anos?

Falei sobre isso com um advogado. Ele deu uma boa gargalhada, e me explicou:

         — Os advogados não sabem de cor as leis. Nós só guardamos na cabeça uma espécie de mapa ou índice, e por meio dele encontramos o texto da lei que interessa.

         — Então vocês também não sabem todas as leis?! Eu achava que soubessem, pois ninguém pode defender-se num tribunal alegando o desconhecimento da lei, e é para isso que a gente tem de pagar caro aos advogados. Se eles também não sabem...

         — Dizem os críticos que o emaranhado de leis e contra-leis é meio de vida dos advogados, pois assim valorizam a profissão. Talvez seja esse o seu pensamento.

         — Vai nessa linha. Eu acho que essas coisas podiam ser simplificadas. Por exemplo, todo mundo sabe que não se pode roubar. Mas vocês criaram a complicação dos termos: roubo, furto, latrocínio, apropriação indébita, improbidade administrativa, fraude contábil, peculato, concussão, extorsão, rapina, formação de quadrilha, crime do colarinho branco, e vai por aí. Os termos se multiplicam, mas no fundo significam a mesma coisa: roubo.

         — Há muitos graus na gravidade do roubo, daí várias expressões para qualificar o crime cometido, e consequentemente graduar a punição.

         — Tudo bem. Mas quando um ladrão decidiu roubar, e no caminho teve que matar, não estava pensando nessas distinções todas. Ele só queria roubar, além disso cometeu outro crime que é matar.

         — Mas você imagine, por exemplo, uma lei rudimentar como esta: Quem roubar, será enforcado.

         — Excelente! Isso todo mundo entende. E se o ladrão já vai ser enforcado porque roubou, não precisa ser enforcado de novo porque também matou. Em alguns países árabes, a lei manda cortar a mão do ladrão. E por lá a quase totalidade da população mantém a mão no respectivo lugar. Não se arrisca a metê-la no que pertence a outros, para não ficar sem ela. Eu não investiria dinheiro numa fábrica de forcas, se houvesse uma lei como você sugeriu, porque logo após os primeiros enforcamentos os roubos acabariam, ou quase. Eu ficaria sem mercado para as minhas forcas, e seria mais sensato fabricar luvas para as mãos que todo mundo tem.

         — Mas é uma injustiça condenar com a mesma pena de morte um batedor de carteiras, que roubou dez reais, e um outro que matou para roubar.

         — Justiça linear, muito boa, pois você sabe que cesteiro que faz um cesto, faz um cento. E a diferença entre um ladrão de galinhas e um juiz ou político corrupto que roubou do erário público é quase só quantitativa. Se o risco é grande, todos evitarão o roubo grande e o pequeno.

         — O que as leis fazem é explicitar o que constitui crime, e em seguida atribuir uma pena proporcional à gravidade dele.

         — Mas isso fica só para os especialistas, pois a população, o homem simples da rua, não toma conhecimento delas. E nunca servem para evitar os crimes, se as pessoas não as conhecem. O que faz falta são leis simples, que todo mundo entenda e respeite.

         — Você quer dizer, por exemplo: Não matar, não roubar, não cobiçar as coisas alheias, não desejar a mulher do próximo...

         — Isso mesmo! Se todo mundo tivesse bem na cabeça e no coração essas leis, que são simples e não passam de dez, a situação seria muito diferente.

         — Acho essa posição muito ingênua e utópica. Só seria possível numa conjuntura de união entre a Igreja e o Estado, e isso é coisa do passado no mundo ocidental. Existe no mundo muçulmano, mas com vários inconvenientes graves.

         — Um deles é que não sobra muito espaço para os advogados, não é?

         Parece que ele não gostou do meu comentário, pois a conversa se encerrou ali. Mas uma verdade incontestável é que a moralidade verdadeira resulta de convicções religiosas. Elabore o Estado quantas leis quiser, só há de cumpri-las quem ama e respeita aquelas dez leis muito simples.


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