DEZ LEIS MUITO SIMPLES
Jacinto Flecha
Minha má memória foi um sério obstáculo na escolha da
atividade profissional, e tenho me defendido contra esta deficiência procurando
entender bem o conteúdo, sem decorar as formulações (Entenda bem as regras, depois esqueça-as).
Nunca eu conseguiria,
por exemplo, ser ator de teatro, pois decorar textos longos estava fora de
cogitação. Eu não os repetiria com as mesmas palavras, e os chamados “cacos”
desnorteariam quem contracenasse comigo. Excluí liminarmente a advocacia: Como
decorar mais de quatro milhões de leis, normas, regulamentos, portarias, etc.,
que a atividade legiferante produziu nos últimos anos?
Falei
sobre isso com um advogado. Ele deu uma boa gargalhada, e me explicou:
— Os advogados não sabem de cor as leis. Nós só guardamos na
cabeça uma espécie de mapa ou índice, e por meio dele encontramos o texto da
lei que interessa.
— Então vocês também não sabem todas as leis?! Eu achava que
soubessem, pois ninguém pode defender-se num tribunal alegando o
desconhecimento da lei, e é para isso que a gente tem de pagar caro aos
advogados. Se eles também não sabem...
— Dizem os críticos que o emaranhado de leis e contra-leis é
meio de vida dos advogados, pois assim valorizam a profissão. Talvez seja esse
o seu pensamento.
— Vai nessa linha. Eu acho que essas coisas podiam ser
simplificadas. Por exemplo, todo mundo sabe que não se pode roubar. Mas vocês
criaram a complicação dos termos: roubo, furto, latrocínio, apropriação
indébita, improbidade administrativa, fraude contábil, peculato, concussão,
extorsão, rapina, formação de quadrilha, crime do colarinho branco, e vai por
aí. Os termos se multiplicam, mas no fundo significam a mesma coisa: roubo.
— Há muitos graus na gravidade do roubo, daí várias
expressões para qualificar o crime cometido, e consequentemente graduar a
punição.
— Tudo bem. Mas quando um ladrão decidiu roubar, e no
caminho teve que matar, não estava pensando nessas distinções todas. Ele só
queria roubar, além disso cometeu outro crime que é matar.
— Mas você imagine, por exemplo, uma lei rudimentar como
esta: Quem roubar, será enforcado.
— Excelente! Isso todo mundo entende. E se o ladrão já vai
ser enforcado porque roubou, não precisa ser enforcado de novo porque também
matou. Em alguns países árabes, a lei manda cortar a mão do ladrão. E por lá a
quase totalidade da população mantém a mão no respectivo lugar. Não se arrisca
a metê-la no que pertence a outros, para não ficar sem ela. Eu não investiria
dinheiro numa fábrica de forcas, se houvesse uma lei como você sugeriu, porque
logo após os primeiros enforcamentos os roubos acabariam, ou quase. Eu ficaria
sem mercado para as minhas forcas, e seria mais sensato fabricar luvas para as
mãos que todo mundo tem.
— Mas é uma injustiça condenar com a mesma pena de morte um
batedor de carteiras, que roubou dez reais, e um outro que matou para roubar.
— Justiça linear, muito boa, pois você sabe que cesteiro que faz um cesto, faz um cento.
E a diferença entre um ladrão de galinhas e um juiz ou político corrupto que
roubou do erário público é quase só quantitativa. Se o risco é grande, todos
evitarão o roubo grande e o pequeno.
— O que as leis fazem é explicitar o que constitui crime, e
em seguida atribuir uma pena proporcional à gravidade dele.
— Mas isso fica só para os especialistas, pois a população, o
homem simples da rua, não toma conhecimento delas. E nunca servem para evitar
os crimes, se as pessoas não as conhecem. O que faz falta são leis simples, que
todo mundo entenda e respeite.
— Você quer dizer, por exemplo: Não matar, não roubar, não
cobiçar as coisas alheias, não desejar a mulher do próximo...
— Isso mesmo! Se todo mundo tivesse bem na cabeça e no
coração essas leis, que são simples e não passam de dez, a situação seria muito
diferente.
— Acho essa posição muito ingênua e utópica. Só seria
possível numa conjuntura de união entre a Igreja e o Estado, e isso é coisa do
passado no mundo ocidental. Existe no mundo muçulmano, mas com vários
inconvenientes graves.
— Um deles é que não sobra muito espaço para os advogados,
não é?
Parece que ele não gostou do meu comentário, pois a conversa
se encerrou ali. Mas uma verdade incontestável é que a moralidade verdadeira
resulta de convicções religiosas. Elabore o Estado quantas leis quiser, só há
de cumpri-las quem ama e respeita aquelas dez leis muito simples.
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