Os dois Brasis
O Brasil real, submetido aos rigores do ajuste fiscal, está paralisado
de espanto, enquanto o Brasil oficial espanta-se com esse espanto – e não sabe
o que fazer
Ruy Fabiano
Há evidente descompasso entre as ruas e o discurso parlamentar. Mesmo
agora, com novas denúncias – as pedaladas fiscais do governo Dilma, o rombo
gigantesco nos fundos de pensão das estatais e a prisão do tesoureiro do PT -,
a oposição ainda hesita quanto à hipótese do impeachment.
O “Fora Dilma” a incomoda tanto quanto ao PT. Mais: não obstante
tenha ingressado na Justiça Eleitoral com um questionamento à lisura das urnas
eletrônicas, a oposição parece convencida de que, no fim das contas, não houve
fraude alguma. Não mais concede à hipótese nem o benefício da dúvida.
Uma coisa é abdicar da causa (ou postergá-la) por sabê-la sem
praticidade e fora de seu alcance; outra, dá-la por incorreta, legitimando o
discurso do adversário. As pesquisas mostram que a grande maioria da população
tem sérias dúvidas a respeito.
Na sua essência, as pesquisas demonstram que a população não crê em
soluções paliativas para a crise. E o Congresso não tem feito outra coisa senão
buscá-las. Eis aí o impasse: a falta de interlocução entre representantes e
representados.
O encontro esta semana, em Brasília, entre líderes oposicionistas e
entidades que organizaram os protestos, evidenciou essa falta de intimidade. A
tolerância do Brasil institucional com os desmandos dos governos do PT é bem
maior que a do Brasil real, que pede providências e maior rigor para os que
delinquiram.
Exemplo disso é a bizantina discussão jurídica quanto à
constitucionalidade de a presidente responder por atos que praticou no mandato
anterior, do qual este é mera continuidade, já que não houve interrupção.
A Constituição é anterior ao princípio da reeleição e diz que o
presidente da república não responde por atos estranhos a seu mandato. Os atos
em pauta foram praticados no exercício do mandato presidencial – portanto, não
lhe são alheios. Não é preciso ser jurista para entender isso. Montesquieu, há
três séculos, já tratava do espírito das leis – e é disso que se trata.
No curso da semana, vieram à tona os rombos nos fundos de pensão de três
estatais: Funcef (Caixa Econômica), Postalis (Correios) e Petros (Petrobrás) –
mais de R$ 5 bilhões para cada um dos dois primeiros e mais de R$ 13 bilhões no
terceiro. A conta será rateada entre os funcionários e o Tesouro (isto é, nós).
Os autores da proeza, todos indicados pelo PT, não são nem mencionados.
Os servidores do Postalis terão de descontar, durante doze anos, 25% de seu
salário para cobrir o rombo. Quem ganha, por exemplo, R$ 1 mil, terá de pagar,
entre outros descontos, R$ 250, para cobrir um rombo que não criou.
Esse escândalo, no entanto, não acresceu qualquer urgência à proposta de
uma CPI dos Fundos de Pensão, contra a qual se move, até aqui com pleno êxito,
o vice-presidente e articulador político do governo Michel Temer.
O que se tem é o contrário: a retirada de assinaturas de apoio a uma CPI
do BNDES no Senado – um escândalo dentro do escândalo. O BNDES, em plena crise,
continuou a mandar auxílio milionário aos vizinhos bolivarianos, sob a rubrica
de “ultrassecreto”. A CPI conseguiu as assinaturas na Câmara, mas não se sabe
se será instalada ou não. Há outras na fila e Michel Temer move-se mais uma vez
para sabotá-la.
É interessante notar o que o mandato faz com alguns personagens. O
ex-craque Romário, hoje senador pelo PSB do Rio, notabilizou-se pela fúria e
audácia com que investia contra os desmandos dos cartolas da CBF.
Não as exibiu, porém, contra os cartolas do BNDES, que fazem com que os
da CBF pareçam aprendizes de escoteiros-mirins. Tirou sua assinatura do pedido
de CPI e não deu qualquer explicação. Nem precisa: certos gestos são
auto-explicáveis.
São tantos os escândalos que é difícil relacioná-los de memória. Todos
têm a marca do governo e do PT, alguns com o apoio de partidos aliados, como PP
e PMDB. Não obstante, dá-se credibilidade à tese de que a presidente atual e
seu antecessor, em cujos governos tudo começou, nada sabiam.
Nixon, nos anos 70, valeu-se também do mesmo argumento – e por um delito
que aqui nem seria considerado como tal: um ato de espionagem política na sede
do Partido Democrata. Renunciou para evitar o impeachment.
O Brasil oficial perdeu a noção de compostura. Antes mesmo que as
investigações da Operação Lava-Jato tenham sido concluídas – e, portanto, antes
que se saiba a real extensão dos delitos cometidos -, o governo anuncia um
acordo de leniência com as empresas infratoras, para que continuem a
prestar-lhe serviços.
O mais estranho é que esse acordo é promovido pelo Executivo, parte
envolvida nos delitos da Petrobras. O Ministério Público, incumbido das
investigações, ficará de fora. E o TCU, em vez de exercer o controle das
contas, será avalista do acerto.
No STF, a turma que presidirá o julgamento, cujos réus, em sua maioria,
pertencem ou têm ligações com o PT, terá à frente um ex-advogado do partido,
Dias Tofoli, que, a exemplo do que ocorreu no Mensalão, não vê qualquer
conflito em julgar antigos clientes. Nem ele, nem a Corte – e nem o Senado, que
esta semana arquivou sumariamente um pedido de impeachment contra Tofoli.
Em suma, o Brasil real, submetido aos rigores do ajuste fiscal, está
paralisado de espanto, enquanto o Brasil oficial espanta-se com esse espanto –
e não sabe o que fazer.
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