04 de novembro de 2014
''Nós, marxistas, lutamos junto com o papa para
parar o diabo''
O Movimento dos Sem-Terra é uma organização fundamental
do Brasil. Stedile é o seu
dirigente mais importante. Marxista ligado à história da teologia da
libertação, ele foi um dos organizadores do Encontro Mundial de Movimentos Populares que
ocorreu no Vaticano na semana passada.
Em uma das
sessões desse debate, que ocorreu entre as curvas sugestivas da sala do Velho Sínodo, ele sugeriu aos purpurados presentes que
canonizem até Antônio... Gramsci.
Os Sem-Terra, a imponente organização que ele dirige, com
cerca de 1,5 milhão de membros, têm uma história antiga de ocupações de terra,
de lutas e conflitos também duros. Mas também cultivam uma relação
"leiga" com o poder, ou, como ele explica, de "autonomia
absoluta". Por isso, na última eleição brasileira, apesar de não se envolver
muito no primeiro turno eleitoral, depois apoiaram Dilma Rousseff no segundo.
Chegando
na Itália para o encontro no Vaticano, ele fez uma turnê de encontros na península
apresentando o livro La lunga marcia dei senza terra [A longa marcha dos sem-terra] (EMI Edizioni), de Claudia Fanti, Serena Romagnoli e Marinella Correggia.
No sábado
à tarde, foi visitar a Rimaflow, em Trezzano sul Naviglio, a fábrica recuperada que Stedile, diante de 300 pessoas, batizou como
"embaixadora dos Sem-Terra em Milão".
Eis
a entrevista.
Como
nasceu o encontro no Vaticano?
Tivemos a
sorte de manter relações com os movimentos sociais da Argentina, amigos de Francisco, com os
quais começamos a trabalhar no encontro mundial. Assim, reunimos 100 dirigentes
populares de todo o mundo, sem confissões religiosas. A maioria não era
católica. Um encontro muito proveitoso.
O
senhor é de formação marxista. Qual a sua opinião sobre o papa e a iniciativa
vaticana?
O papa deu uma grande contribuição, com um documento irrepreensível, mais à esquerda do que muitos de
nós. Porque
afirmou questões de princípio importantes como a reforma agrária, que não é só um problema econômico e político, mas também moral.
De fato, ele condenou a grande
propriedade. O importante é a simbologia: em 2.000 anos, nenhum papa jamais
organizou uma reunião desse tipo com movimentos sociais.
O
senhor foi um dos promotores dos Fóruns Sociais nascidos em Porto Alegre. Há
uma substituição simbólica por parte do Vaticano em relação à esquerda?
Não, acho
que Francisco teve a capacidade de se colocar
corretamente diante dos grandes problemas do capitalismo atual como a guerra, a
ecologia, o trabalho, a alimentação. E ele tem o mérito de ter iniciado um
diálogo com os movimentos sociais. Eu não acho que há sobreposição, mas
complementaridade.
Em todo
caso, assumo a autocrítica, como promotor do Fórum Social, do seu
esgotamento e da sua incapacidade de criar uma assembleia mundial dos
movimentos sociais.
Do
encontro com Francisco, nascem duas iniciativas: formar um espaço de diálogo
permanente com o Vaticano e, independentemente
da Igreja, mas aproveitando a reunião de Roma, construir no
futuro um espaço internacional dos movimentos do mundo.
Para
fazer o quê?
Para combater
o capital financeiro, os bancos, as grandes multinacionais. Os "inimigos do povo" são esses.
Como diria o papa, esse é o diabo. Mesmo
que todos nós vivamos o inferno.
Os pontos
traçados do encontro de Roma são muito
claros: a terra, para que os alimentos não sejam
uma mercadoria, mas um direito; o direito de todos os povos de terem um território, seu próprio país,
pense-se nos curdos de Kobane ou
nos palestinos; um teto digno para todos; o
trabalho como direito inalienável.
Os
Sem-Terra organizam cursos de formação sobre Gramsci e Rosa Luxemburgo. Nenhum
problema para trabalhar com o Vaticano?
Nós vivemos uma crise epocal. As ideologias do segundo pós-guerra se
aprofundaram. As pessoas não se sentem mais representadas. No entanto, essa
crise também oferece oportunidades de mudança, desde que ninguém se apresente
com a solução pronta no bolso. Será preciso um processo, um movimento de
participação popular. E qualquer pessoa disposta a participar dele deve ser
incluída.
No
Brasil, vocês apoiaram a eleição de Dilma Rousseff. Qual é a sua opinião sobre
o governo do PT e o seu futuro?
A
autonomia, para nós, é um valor importante. O PT geriu o
poder com uma linha de "neodesenvolvimentismo", mais progressista do
que o neoliberalismo, mas baseada em um pacto de conciliação entre grandes
bancos, capital financeiro e setores sociais mais pobres. A operação de
redistribuição da renda favoreceu a todos, mas principalmente os bancos.
Agora,
porém, esse pacto não funciona mais, as expectativas populares cresceram. O
ensino universitário, por exemplo, integrou 15% da população estudantil, mas os
85% que ficaram de fora pressionam para entrar. Só que, para responder a essa
demanda, seria preciso ao menos 10% do PIB, e, para levantar recursos desse
tamanho, se romperia o pacto com as grandes empresas e os bancos.
Então?
O governo
tem três caminhos: unir-se novamente à grande burguesia brasileira, como lhe
pede o PMDB, construir um novo pacto social com os movimentos
populares ou não escolher e abrir uma longa fase de crise. Nós queremos desempenhar um papel e, por isso, propomos um referendo
popular para uma Assembleia Constituinte para a reforma da política. A força do povo não está no Parlamento.
Qual
é a situação do Movimento dos Sem-Terra hoje?
A nossa ideia, no início, era a de realizar o sonho de todo agricultor
do século XX: a terra para todos, bater o latifúndio. Mas o capitalismo mudou,
a concentração da terra também significa concentração das tecnologias, da
produção, das sementes.
É inútil ocupar as terras se, depois, produzirem transgênicos. Não é mais suficiente repartir a terra, mas é preciso uma alimentação
para todos, e uma alimentação sadia e de qualidade. Hoje visamos a uma reforma agrária integral, e a
nossa luta diz respeito a todos. Por isso, é preciso uma ampla aliança com os
operários, os consumidores e também com a Igreja. Somos aliados de qualquer
pessoa que deseje a mudança.
Fonte: Il
Fatto Quotidiano
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