sábado, 11 de julho de 2015

Habemus papam ecologistum



Habemus papam ecologistum

Evaristo E. de Miranda[i]

A encíclica Laudato Sí, do Papa Francisco, emprega 74 vezes a palavra “natureza”, 55 vezes “meio ambiente” e uma só vez a expressão “Jesus Cristo”, aquela que designa a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Já o mestre galileu, não divinizado, chamado apenas de Jesus, aparece 22 vezes, o mesmo número de citações do termo “tecnologia” e menos de metade da “ciência”, evocada 55 vezes. Contudo, a Academia Pontifícia de Ciências, com mais de uma dezena de prêmios Nobel, parece não ter contribuído muito e não é evocada. A palavra democracia não existe no texto.

A encíclica é densa. Merece leitura, estudo e reflexão. Nela, a questão ecológica é abordada, não apenas em sua dimensão “natural” stricto sensu. O documento aborda seu contexto humano, social, político, religioso e cultural. O texto não é dirigido apenas a bispos e católicos. Fato raríssimo, o Papa fala na primeira pessoa do singular. Ele deixa de lado o “Nós”, o plural majestático, característico de pronunciamentos pontifícios. Ele se dirige aos crentes (judeus, muçulmanos...) e aos não crentes. Para falar à humanidade, o Papa evoca a responsabilidade de todos em gerir a terra como a nossa casa comum. Ele defende um crescimento econômico com temperança e sobriedade, fundado na mudança de comportamentos.

Novos “ismos”. A encíclica não usa uma única vez as palavras capitalismo e socialismo. Apenas ao evocar a história, menciona o nazismo e o comunismo. Já alguns “ismos”, de natureza eminentemente comportamental, são de uso amplo no texto: consumismo, individualismo, relativismo, antropocentrismo, realismo, condicionalismo e ceticismo.

A encíclica repercutiu positivamente na mídia. O dever jornalístico levou a muitos artigos e editoriais com pretensão de resumir o documento. Tarefa difícil. Outros ainda fizeram e fazem leituras seletivas do documento para sustentar, justificar ou ampliar suas teses tradicionais. Tem gente que não leu e gostou. Outros não leram e não gostaram. Sobre um documento que coloca muitos questionamentos, cabem algumas questões pouco lembradas.

Ciente da complexidade do tema abordado, o Papa Francisco reitera: “Há discussões sobre problemas relativos ao meio ambiente, onde é difícil chegar a um consenso. Repito uma vez mais que a Igreja não pretende definir as questões científicas nem substituir-se à política, mas convido a um debate honesto e transparente, para que as necessidades particulares ou as ideologias não lesem o bem comum.” (188). Pode-se indagar: os homens e as sociedades podem ser geridos por consenso? Existe alguma nação funcionando por consenso? Quais ideologias lesam o bem comum? Quem pode identificá-las? Qual a diferença entre necessidades (termo da encíclica) e interesses (termo na mídia) particulares na temática ambiental?

A geografia da poluição. O balanço ecológico do progresso planetário, logo no primeiro capítulo, é negativo, pessimista e pouco equilibrado. Ele fala de poluição generalizada provocando milhares de mortes prematuras. Contudo, mais generalizado ainda foi o aumento da esperança de vida e da educação em todo o planeta, acompanhando o crescimento industrial e a tecnificação da agricultura. Nunca se viveu tanto, nunca se comeu tanto, nunca se estudou e se votou tanto em todo o planeta, como atualmente.

Os problemas de poluição não existiam nas sociedades pré-históricas. Se eles são constantes e concomitantes ao desenvolvimento, também foram e são resolvidos pelos avanços da ciência e da tecnologia. Na linha dessa preocupação pontifícia, por que a exportação de indústrias poluidoras para países periféricos, como parte da estratégia de limpeza ambiental praticada há décadas em nações desenvolvidas, não foi lembrada?

Conversando com idosos. “Em muitos lugares do planeta, os idosos recordam com saudade as paisagens de outrora, que agora veem submersas de lixo.” (21). Essa afirmação parece um pouco reducionista quando consideradas as condições insalubres nas quais se vivia até o começo do século XX na Europa e nas quais ainda vive grande parte da população mundial. Não há razão para não se investir numa gestão mais eficiente dos resíduos e na redução de sua produção, mas as paisagens de outrora, mesmo na Europa, sem drenagem ou barragens, eram marcadas por enchentes, epidemias, doenças crônicas, períodos de fome, com pessoas subnutridas em habitats insalubres, sem aquecimento ou energia elétrica.

A memória desses idosos deve lembrar o que era a vida cotidiana em tais paisagens, sobretudo no inverno ou em tempos de seca. Seus filhos são mais altos e já perdem em estatura para seus netos, graças à nutrição adequada, como ocorre agora em muitos países em desenvolvimento.

Progresso e tecnologia. As sociedades economicamente desenvolvidas têm os meios para cuidar de sua biodiversidade, para reduzir a poluição da terra e do ar, para proteger e manter limpos os seus mares e rios. Elas universalizaram o saneamento básico com tecnologias avançadas de gestão de efluentes, incomparáveis às utilizadas em estações de tratamento de esgoto do Brasil, por exemplo. Nos países ricos, o ciclo de vida das mercadorias é planejado; o lixo é classificado, tratado e reciclado; muitos ecossistemas estão preservados e são desfrutados por uma população com amplas garantias sociais e com acesso a uma intensa vida cultural.

Ao associar o uso de insumos modernos na agricultura apenas a seus possíveis efeitos tóxicos, a encíclica não faz justiça à segurança alimentar conquistada por recordes de produção. Nem aos ganhos de qualidade nutritiva e sanitária, e à queda no preço dos alimentos que esses mesmos insumos, frutos de ciência e tecnologia, permitiram obter beneficiando, sobretudo, os mais pobres. Unilaterais, os oráculos consultados pelo Papa, não tiveram aqui e alhures o justo equilíbrio. “Para os países pobres, as prioridades devem ser a erradicação da miséria e o desenvolvimento social dos seus habitantes” (172), diz o Papa. Como atingir esses objetivos sem crescimento econômico e novas técnicas e tecnologias? Por consenso?

O Papa Paulo VI já evocara o tema ambiental, em 1971, na Pacem in terris.  João Paulo II foi o primeiro a convidar para uma conversão ecológica, apesar da mídia tratar a ideia como novidade da Laudato Sí. Ele o fez em 2002, ao assinar com o patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I, uma declaração comum pela salvaguarda da Criação, em Veneza.

Bento XVI tratou de ecologia ao longo de todo o pontificado. Na Caritas in Veritate (2009), ele dizia: “Quando a Igreja Católica toma a defesa da Criação, obra de Deus, ela não deve apenas defender a terra, a água e o ar (...) mas também proteger o homem contra sua própria destruição”. Sob seu pontificado, o menor Estado do planeta tornou-se neutro em emissão de carbono e adotou metas ambientais ambiciosas. Não há indústria poluidora em seus 44 ha (só faltava!). O papamóvel foi transformado em veículo flex. Painéis solares fornecem energia para a sala de audiências ao lado da Basílica de S. Pedro. Bento XVI também plantou uma floresta de 7.000 ha na Hungria, destinada a compensar as emissões de gases de efeito estufa do Vaticano. Se o Papa Francisco pode dirigir injunções ambientais aos outros países é porque também, de certa forma, o Vaticano fez sua lição de casa.




[i] Pesquisador da Embrapa, doutor em ecologia, diretor do Instituto Ciência e Fé.

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