Péricles Capanema
Em 1927, Julien Benda
publicou na França “Trahison des clercs”, livro controvertido, que fez
história. Apontava generalizada a traição dos letrados, cegos à realidade,
subservientes diante do poder totalitário. Em linguagem mais atual seriam
intelectuais, clérigos, artistas, grandes milionários, cuja ação favorece a
servidão comunista. George Orwell os qualificava de esquerda moral: “Os intelectuais são levados para o totalitarismo muito mais que
as pessoas comuns”. Raymond Aron acoimou tal fenômeno de “passagem da
consciência livre à servidão voluntária”. Atrahison des clercs virou
moeda corrente na vida pública francesa. A mais rumorosa delas foi a degradação
de Jean-Paul Sartre diante das ditaduras comunistas da Rússia e da China.
Nelson Rodrigues tachou-o de “canalha translúcido”.
Lembrei-me da
expressão ao, confrangido, passar os olhos no volumoso noticiário sobre Antônio
Cândido de Mello e Souza (1918-2017), crítico literário, presente na vida
pública desde muitas décadas. O comentário do crítico Sérgio Augusto sobre o
escritor falecido dá o tom da cobertura: “Era, sem hipérbole, o maior
brasileiro vivo. Sua morte, sem clichê, marca o fim de uma era”.
Vejamos seu
pensamento. Transcrevo partes de entrevista que concedeu em agosto de 2011: “O
socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo”. A agressão à
realidade não poderia ser maior. Emendou, consertando: “Chamo de socialismo
todas as tendências que dizem que o homem tem de caminhar para a igualdade.
Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo
social, cooperativismo”. No mínimo está pouco matizada e delirantemente
imprecisa a junção indiferenciada de todas as mencionadas correntes na
tentativa de esconder o amazônico fracasso socialista. Volta-se então para o capitalismo:
“O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na
mais-valia e no exército de reserva como Marx definiu”. Na vida real, os pobres
do mundo tentam entrar de todas as maneiras na nação capitalista, os Estados
Unidos. E sempre fugiram como da peste de todas as nações comunistas. Que
construíram muros, cercas e treinaram polícias para mantê-los encarcerados no
próprio país.
O entrevistado tinha
um problema, o socialismo como existiu na prática, dirigindo tudo,
invariavelmente oprimiu e empobreceu o povo. Escapou com uma pirueta: “O
socialismo só não deu certo na Rússia. Virou capitalismo. A revolução russa
serviu para formar o capitalismo. O socialismo deu certo onde não foi ao
poder”. Outra vez, oculta o real. A Rússia não foi o único desastre. O
socialismo fracassou na proporção de sua realização em todos os países em que
foi aplicado.
Antônio Cândido teve
o descaramento de propor um modelo “formidável”: “O socialismo humanizou o
mundo. Em Cuba eu vi o socialismo mais próximo do socialismo. Cuba é uma coisa
formidável, o mais próximo da justiça social. Não a Rússia, a China, o
Camboja”. A tirania dos irmãos Castro é o modelo a ser exaltado e copiado.
Coerente na hora de
votar: “Quando eu era militante do PT ▬ deixei de ser em 2002, quando o Lula
foi eleito ▬ era da ala do Lula, da Articulação, mas só votava nos candidatos
da extrema esquerda”. A Articulação é uma espécie da Centrão dentro do PT, tem
programa mais gradualista. O crítico literário, na hora do voto, evitava sufragar
sua corrente, procurava fortalecer a extrema esquerda. Era ainda coerente com
sua matriz ideológica: “Tenho muita influência marxista ▬ não me considero
marxista, mas tenho muita influência marxista na minha formação e também muita
influência da chamada escola sociológica francesa, que geralmente era formada
por socialistas”.
Antônio Cândido aqui
é sobretudo um exemplo. Exemplo de dezenas, talvez centenas de milhares de
intelectuais, clérigos e milionários brasileiros (no mundo todo, à vera) que,
cegos à realidade, trotam fanatizados atrás de delírios sociais igualitários.
São corresponsáveis das piores tragédias sociais do século 20 e 21. Dom Paulo
Evaristo Arns, que convidou o ateu e em boa parte marxista Antônio Cândido para
a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, foi desses clérigos.
Compartilhou o entusiasmo do escritor pela tirania castrista. Em carta ao
ditador comunista, derreteu-se o prelado brasileiro: “Aproveito a viagem do
frei Beto para lhe enviar um abraço e saudar o povo cubano por ocasião deste
30º aniversário da Revolução. Hoje em dia Cuba pode sentir-se orgulhosa de ser
no nosso continente um exemplo de justiça social. A fé cristã descobre, nas
conquistas de Revolução, os sinais do Reino de Deus”. E vai por aí afora, num
deprimente exemplo de sabujismo a um regime torcionário.
Diante de nossa porta
temos o caso da Venezuela, outra aplicação do socialismo. Informa o jornalista
venezuelano Moisés Naim no OESP: “Não é Maduro que importa. Tirá-lo do poder
não basta. Ele é simplesmente o bobo útil dos que realmente mandam na
Venezuela: os cubanos, os narcotraficantes e a viúvas do chavismo. E,
obviamente, os militares ▬, ainda que, tristemente, as Forças Armadas tenham
sido subjugadas e estejam a serviço dos verdadeiros donos do país. O componente
mais importante dessa oligarquia é o governo cubano. Para Cuba não há
prioridade maior que continuar controlando e saqueando a Venezuela. E Havana
sabe como fazer isso. Os cubanos aperfeiçoaram as técnicas do Estado policial.
Acima de tudo, os cubanos sabem como se proteger de um golpe militar. Não é por
acaso que a Venezuela tem hoje mais generais que a OTAN ou os Estados Unidos.
Ou que muitos ex-generais estejam exilados. Narcotraficantes. Eles constituem o
outro grande poder. Os herdeiros políticos de Chávez são o terceiro grande
componente do poder real na Venezuela”. Os cubanos comunistas, lembrando
Antônio Cândido, constroem lá agora, uma vez mais, uma sociedade “formidável”.
Termino. Sofremos
apocalíptica mistificação, promovida pela opinião que se publica. Opinião
pública é outra coisa. Os setores que perenizam a “trahison des clercs”
alardeiam humanismo, tolerância, amor aos pobres. É a face da fantasia. Na
outra face, a da realidade, tornam possível a implantação do comunismo
repressor, implacável, disseminador da miséria. Desmitificá-los de há muito se
tornou obra prioritária de salvação nacional e caridade social.
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