O Papa e a Amazônia
Moral e religiosamente, o Brasil se
veria destituído de soberania sobre essa porção de seu território
A encíclica Laudato si, do Papa
Francisco, dedicada a questões ambientais e também denominada de “Sobre o
cuidado da casa comum”, entendida esta última como Criação, suscitou uma enorme
reação, sobretudo favorável. Poucas foram as vozes críticas. Isto se deve,
principalmente, ao fato de o ambientalismo ser, hoje, uma nova forma de
ideologia, fortemente compartilhada pela opinião pública, sobretudo nos centros
urbanos.
Trata-se de um documento muito bem
escrito, em torno de 80 páginas, que se dedica ao que chama de “ecologia
integral”, unindo questões propriamente ambientais, com questões morais,
sociais, religiosas e econômicas. Isto significa que, sob este nome, o Papa tem
a pretensão de oferecer toda uma nova concepção de mundo, que, no seu entender,
deveria passar a orientar a vida das pessoas em geral, independentemente de seu
credo religioso.
Sua encíclica, então, não está
voltada exclusivamente aos católicos, mas a toda a humanidade, a todos os
habitantes do planeta Terra. Mais ainda, visa a que se estabeleçam formas
internacionais de controle de grandes empresas e países, a partir do
fortalecimento de organismos internacionais e de atuação de ONGs ambientalistas
e indigenistas.
O Papa critica fortemente as grandes
empresas internacionais que estariam preocupadas exclusivamente em saquear os
recursos naturais de regiões de grande biodiversidade como a Amazônia, a Bacia
do Congo e os grandes lençóis freáticos e glaciares. Aliás, no documento, são
as três únicas regiões do mundo referidas. Neste sentido, ele seria contra a
“internacionalização” política dessas áreas do planeta.
Aparentemente, ele seria contra a
internacionalização da Amazônia, entendida como uma forma de dominação de
grandes empresas e dos países mais desenvolvidos. A imprensa nacional tomou
essa formulação pelo seu valor de face, ressaltando o fato de o Santo Padre
defender a soberania nacional, no caso brasileiro, a da Amazônia. Logo, o
Brasil não teria com o que se preocupar. Uma leitura atenta do documento,
contudo, permite desvelar uma outra concepção.
A Amazônia, mais especificamente, é
considerada como um dos grandes pulmões do planeta. Ela é vital para o conjunto
da Terra, enquanto criação divina, e para o futuro da humanidade.
Ou seja, ela
não pode ficar à mercê dos grandes “interesses econômicos internacionais”, nem,
poderíamos acrescentar, da soberania do Brasil, pois ela é, na verdade, um
patrimônio internacional, da humanidade, uma obra mestra da Criação, tendo sido
Deus o seu artífice.
Atentar contra a Amazônia significaria atentar contra um
pulmão do mundo, talvez o mais importante e, teologicamente, contra a Criação.
Isto é, moral e religiosamente, o Brasil se veria destituído de soberania sobre
essa porção de seu território.
Em linguagem papal, “torna-se
indispensável criar um sistema normativo que inclua limites invioláveis e
assegure a protecção dos ecossistemas, antes que as novas formas de poder
derivadas do paradigma tecno-económico acabem por arrasá-los não só com a
política, mas também com a liberdade e a justiça” (a ortografia é de português
de Portugal).
O novo sistema normativo, moralmente
fundado, passaria a ser exercido por organismos internacionais e ONGs nacionais
e internacionais, ambientalistas e indigenistas, que passariam a ditar o que
pode ou não ser feito nesse enorme território nacional. A decisão última seria
transferida do Estado nacional para elas, contando, internamente, com a
participação ativa — e decisiva — da CNBB e de seus órgãos como a Comissão
Pastoral da Terra (CPT) e a Comissão Missionária Indigenista (Cimi). Ou seja,
um país como o Brasil poderia perder “religiosamente”, “moralmente”,
“ecologicamente” e “socialmente” a Amazônia, que passaria a ser controlada por
essa nova espécie de poder.
A construção da Usina de Belo Monte e
outras na Amazônia tornar-se-iam inviáveis. Na perspectiva papal, os
interlocutores privilegiados seriam os indígenas e, principalmente, seus
porta-vozes de ONGs e movimentos sociais, pois deveria caber essencialmente às
“populações aborígenes” o cuidado da “Casa Comum”. Não poderia um país decidir
o que fazer com o pulmão do mundo, que seria, moral e religiosamente,
propriedade de todos os membros do planeta, da Obra Divina. O Brasil deveria,
realmente, abdicar de sua soberania.
Seguindo a linha dos movimentos
sociais, centra sua crítica ao agronegócio em geral, principalmente à
monocultura e às empresas proprietárias de grandes extensões de terra. Seu
elogio reside no acolhimento da agricultura familiar, da pequena propriedade e
das populações aborígenes. O “clamor da natureza” se identificaria com o
“clamor dos pobres”. Saliente-se igualmente suas constantes investidas contra o
“lucro” e o “egoísmo”. A sua concepção está baseada em uma relativização da
propriedade privada.
Há, portanto, neste documento, uma
confluência entre questões ambientais, religiosas, morais e sociais, fazendo
dos porta-vozes dos pobres e de questões ambientais os verdadeiros
representantes de uma nova humanidade a ser construída. As ONGs ambientalistas
e indigenistas são, então, erigidas em um novo poder mundial, entendido,
contudo, como se fosse uma espécie de poder moral.
Elas estariam se tornando uma espécie
de novo Evangelho, como se suas concepções pudessem ser, de certa maneira,
identificadas a uma nova forma de religiosidade universal. Isto é, elas
passariam a ser um tipo de poder supranacional que contaria com o beneplácito
da Igreja, que as sustentaria nas críticas que recebem dos países nos quais
operam.
Os movimentos sociais de esquerda e
as ONGs ambientalistas e indigenistas nacionais e internacionais seriam, nesta
perspectiva, não apenas os representantes desta nova humanidade, mas os
interlocutores privilegiados do mundo político em escala planetária. Teríamos,
aqui, uma nova forma de poder político, tido por moral em sua essência, que não
poderia ser limitado por nenhuma forma de poder nacional.
Denis Lerrer Rosenfield é professor
de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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