A imaginação no poder
Em maio de 1968 os estudantes na Paris convulsionada proclamavam comunismo de face nova, autogestionário e utópico, oposto ao socialismo burocrático da União Soviética. Dois slogans provocaram coceira mais intensa: L’imagination au pouvoir e Soyons réalistes, demandons l’impossible (a imaginação ao poder; sejamos realistas, reclamemos o impossível). Têm algo deboutade, mas eram anúncio de enorme mudança.
Para os estudantes, era hora de a fantasia chegar ao poder. De outro modo, a inteligência vencida, perdia o governo isolado, que passava a ser compartilhado pela imaginação, até então la folle du logis(a louca da casa). E ela tornaria alcançáveis aspirações outrora consideradas delirantes. Para ambiente político novo, novas forças mobilizadoras. Turbinadas pelas emoções, se tornou crescente a importância do sonho e da utopia. Empurram para o fundo do palco os antigos programas de conteúdo estruturado, bafejados no fundo pelo iluminismo, esteado no culto da razão.
Na ocasião, como reagiu a França, vista em geral como o país do racionalismo? No primeiro momento, com pasmo e horror. O presidente Charles de Gaulle [foto] comandou gigantesca mobilização e manifestações populares contra o que chamou de chienlit (o desbordamento, a bagunça). As eleições parlamentares resultaram em enorme maioria gaullista, nunca antes alcançada, 394 deputados de um total de 487. Parecia a derrota definitiva do programa novo. Mas o maio de 1968 não era sobretudo parlamentar, nem acontecimento restrito à França.
Era parte de fenômeno universal, que visava modificar doutrinas, mas também hábitos, mentalidades, cultura. Nesses anos o movimento hippie levava ao paroxismo costumes libertários que depois, em versão menos espinhenta, tomaram o mundo inteiro. John Lennon a ele emprestou sua voz emImagine (composta em 1971), canção recebida em delírio pela juventude burguesa no mundo inteiro:
Imagine, não existe o Paraíso [...]Imagine todas as pessoasVivendo apenas para o presenteImagine não existir países [...]Nada pelo que matar ou morrerE nenhuma religião tambémImagine todas as pessoasVivendo a vida em pazVocê pode dizerQue sou um sonhadorMas não sou o únicoTenho a esperança de que um diaVocê se juntará a nósE o mundo será como um sóImagine não existir propriedades [...]Uma irmandade do homemImagine todas as pessoasCompartilhando todo o mundo
Em 1975 Paulo VI advertiu que “psicólogos e sociólogos afirmam ter o homem moderno ultrapassado já a civilização da palavra [...] e viver a civilização da imagem”. Repito, a palavra, expressão da lógica, decaía; a imagem, aninhada na fantasia, subia. Em consequência, na política, de forma crescente, o inesperado e o despropositado vão estar presentes no cenário, com riscos evidentes.
Em 2011, dois movimentos, o Occupy Wall Street nos Estados Unidos e os Indignados na Espanha, ecos longínquos do maio de 1968, repercutiram mundo afora, com apelos contestatários e anticapitalistas. Na Espanha, efeito imediato, surgiu o Podemos que, nas últimas legislativas, obteve 20,6% dos votos e 69 cadeiras numa câmara de 350. Nos Estados Unidos, o Occupy Wall Street tem sensível influência nas posições do senador Bernie Sanders, que disputa com Hillary Clinton a indicação democrata. A eleição de Barack Obama já se deveu muito à emoção e ao sonho.
Não só à esquerda se aninha a coceira pelas fórmulas salvadoras, de grande carga emocional. Contamina também a área conservadora. Exemplo, a ascensão desnorteante de Donald Trump [foto]. Jeb Bush, em certo momento, com seu ar razoável, meio sem graça, foi o candidato com maiores chances. Dificilmente se reerguerá, escrevo logo depois das primárias de Iowa.
Donald Trump muda de partido, muda de opinião, tem posições claramente irrealizáveis, agride sem razão, por vezes desagrega o universo conservador. Nada em seu passado afiança que no poder será fiel à pregação de campanha. Mas desperta sonhos. Continua formigando no público conservador o comichão de apoiá-lo. Outro traço preocupante, pregação com indisfarçável nota bonapartista, o chamarisco da eficiência simplificadora. Lembro, diante do país esfacelado pela Revolução Francesa, o povo buscava desesperadamente um salvador; para restabelecer a ordem se apresentou um general jovem, resoluto, vitorioso (nada faz tanto sucesso como o sucesso). Outra possibilidade, a França tinha, longe, esfumaçado, um pretendente (o conde de Provença, futuro Luís XVIII) imerso nas brumas inglesas, ornado apenas com os encantos da legitimidade. Aclamou Napoleão, vieram a seguir, de cambulhada, cerca de quinze anos de guerras e convulsões sociais. Finalmente foi chamado Luís XVIII que, na pátria devolvida a seus limites naturais, repôs as coisas num caminho de normalidade. A propósito, difícil negá-lo, Jeb Bush em algo lembra Luís XVIII. Moral da história, sempre arriscado a imaginação tomar o poder.
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