sábado, 7 de junho de 2014

Ditadura antropológica e jovem dissidente (inteligente)


Edward Luz é a contramão da antropologia atual sobre indígenas no Brasil.


Em recente passagem pela Capital, o antropólogo veio ao estado a convite da Comissão de Assuntos Agrários da OAB-MS para apresentar suas reflexões sobre a questão indígena no âmbito dos conflitos rurais, tão urgentes em Mato Grosso do Sul


Edward Luz é 'persona non grata' da antropologia tradicional brasileira. Foto: Deivid Correia


Após um ano do episódio conflituoso de reintegração de posse da fazenda Buriti, em Sidrolândia, o impasse entre produtores rurais e indígenas tornou-se uma novela diante da incapacidade do Governo federal em lidar com a questão de forma igualitária para ambas as partes. 

De um lado, comunidades indígenas reivindicam o direito a terras ancestrais por meio da Funai. De outro, estão os produtores que veem suas terras invadidas e alegam que o processo atropelado trava o desenvolvimento do agronegócio na região, além de não receberem indenizações à altura do valor de seus investimentos.

No meio da disputa, estão os antropólogos que periciam e produzem laudos a despeito das demarcações dessas terras. Edward Luz, formado pela Universidade de Brasília, é atualmente a contramão das correntes que defendem a apropriação, superficialmente fundamentada, de terras por indígenas. 

Perseguido dentro do seu próprio campo de atuação, Luz oferece uma visão da engenharia social dessas comunidades sob novo ângulo e defende que interesses políticos e até internacionais estão por trás dessas ocupações. Veja a primeira parte da entrevista:

TopMídia News - Na visão antropológica da situação, a grande questão é como uma pessoa ou grupo pode se autodeclarar indígena diante de tanta miscigenação desde os longínquos anos de 1500? Ou seja, como e o que legitima a pessoa a ser indígena?

Edward Luz - A pergunta é simples, mas a resposta é complexa. Trata-se de um fenômeno que é a construção da identidade pessoal ou coletiva, é um fenômeno psicossocial - identidade é algo que você constrói para si mesmo, mas precisa do respaldo da sociedade que vai confirmar essa identidade.

Vamos falar do meu caso. Mantoanelli é meu sobrenome do meio, ou seja, sou descendente de italianos. O governo italiano juntamente com o brasileiro estabeleceu um pacto de reconhecimento da identidade italiana até a terceira geração, ou seja, se o meu avô tivesse nascido na Itália, eu teria a cidadania do país com todos os direitos que lhe apregoa.

Ora, se todas as pessoas que tenham sobrenome italiano podem requerer a cidadania, será que eu consigo alguma coisa nesse esquema? É possível entender que há benefícios em você ter o reconhecimento de outra nacionalidade. É aí que começa a complexidade da resposta. Você tem uma identidade psicossocial construída, mas também tem estímulos  - positivos ou negativos.

Em 1939, na época da Alemanha Nazista, se você fosse judeu, correria um sério risco de ser preso e enviado a campos de concentração e sofrer, obviamente, algum tipo de discriminação. Portanto, muitas pessoas deixavam de lado a identidade judia ou a escondiam de certa forma.



Para Edward Luz, a afirmação de uma identidade depende das vantagens e desvantagens de se fazê-lo. Campo de concentração judeu durante a Alemanha Nazista (Auschwitz - 1945). Foto: Alliance

A construção da identidade, portanto, varia de acordo com estímulos ou interesses - ou você foge da pena ou vai atrás do benefício. Essa é a hora em que tudo fica mais complicado. A meu ver, essa circunstância começa numa boa vontade.

A sociedade brasileira também é formada por indígenas. O Brasil ainda têm sociedades indígenas, como os ianomâmis, xavantes e outros grupos da Amazônia brasileira. No total, são 215, mas pelo menos 15 milhões de brasileiros ou até mais, sobretudo no Norte, no Nordeste e até aqui no Centro-Oeste fazem parte de uma população miscigenada. 

Essa população poderia construir para si uma identidade de mestiço, mas não o faz por quê? Há algum benefício em se dizer mestiço? Alguém ganha algum centavo? Mas e quando se autodeclara indígena? A situação muda bastante.

TopMídia News - Na prática, há vantagens em ser indígena no Brasil?

Edward Luz - O estado brasileiro concedeu alguns benefícios e reconheceu alguns direitos diferenciados, como à terra, educação especial e assistência exclusiva. Só que o caboco, que aqui é chamado de bugre, mas no Amazonas é conhecido por caboco -  que vem da palavra tupi kaabok (aquele que mora na mata) - é fruto da miscigenação, ele sabe que é miscigenado e não existe benefício especial a ele. Mas quando a pessoa se diz indígena, ela tem uma série de benefícios que despertam interesse.

Por isso diversas organizações, como ONGs nacionais e internacionais, existem para promover essa luta a fim de conseguir o reconhecimento do miscigenado como indígena e se aproveitam da situação. O próprio indivíduo muitas vezes descobre tais vantagens por si só. Para se ter uma ideia, já me perguntaram como é que faz para se tornar índio.

TopMídia News - Na esfera social, qual é a descrição correta da identidade indígena?

Edward Luz - Acompanhe o raciocínio: índio é um indivíduo que se reconhece e é reconhecido por uma comunidade que também se reconhece como indígena e que é reconhecida pela sociedade nacional não sendo uma comunidade indígena.

Vamos supor que eu queira dizer que sou zulu - uma comunidade africana. Os zulus vão olhar para mim e dizer “olha Edward, você não possui os pré-requisitos para ser considerado zulu. Além do mais, você não fala a língua zulu e não tem nenhum elemento da cultura zulu”. Então, a própria comunidade vai me dizer: você não é zulu.

Esse fato aconteceu recentemente no Brasil. Um grupo que se dizia pataxó - composto por afrodescendentes misturados com brancos e orientais - queria ser dizer parte da etnia e a própria comunidade disse que não se tratava de pataxó. Inventaram uma nova designação e recriaram um grupo tupinambá [dados como extintos desde o século XVII, mas tiveram o seu reconhecimento oficial pelo FUNAI, em maio de 2002] que foi aceito pelo Estado e não pela sociedade.

Nesse caso, o Estado contratou uma antropóloga portuguesa que fez estudos e diversas teses durante três anos para fundamentar uma demanda política que é o reconhecimento desse grupo como se fosse indígena, mas não é. 

Com qual autoridade eu digo isso? Digo isso porque eu avaliei o corpo social do grupo, pois parentes de primeiro, segundo e terceiro grau daqueles que se autodeclararam pataxó não reconheceram essa identidade. No caso, primos, tios e avós não eram e pataxós e como a pessoa então pode dizer que faz parte dessa comunidade no momento?

Eu luto para que o Estado Brasileiro reconheça o direito da sociedade envolvente naquela região e não o abusivo daqueles que querem se dizer indígenas não sendo.


TopMídia News - O Sr. diz que muitos desses laudos antropológicos se tratam de factoides?

Edward Luz - Exatamente e eu não os aceito, pois isso, a meu ver, é uma tentativa de manipulação da identidade étnica com vistas à obtenção de benefícios exclusivos de populações indígenas e isso perverte o processo e os direitos tradicionais que a sociedade reconheceu.







Conflito após reintegração de posse da fazenda Buriti em Sidrolândia completa um ano. Foto: Deivid Correia

O povo brasileiro já se posicionou e decidiu que não quer que o índio seja mais explorado. Queremos que ele se desenvolva e encontre seu próprio caminho para esse desenvolvimento.

Mas tem gente pegando carona no processo. Se achar indígena não é critério suficiente, ser reconhecido por uma comunidade que não é reconhecida por ser indígena também não é suficiente. Não dá para chegar e inventar nomes e criar aldeias - não adianta, se a minha comunidade ao redor não nos reconhece.

TopMídia News - O Sr. apresenta grande divergência de opinião da antropologia do mainstream (corrente atual mais forte). A que se deve isso?

Edward Luz - Sim e explico a razão disso. A crítica que estou fazendo agora bate de frente com a antropologia tradicional, pois está muito pautada e se fiando no valor do lado antropológico. Se o cara se diz indígena e os familiares dizem que ele é indígena, o antropólogo vem e assina o laudo - é indígena e fim de discussão.

A meu ver não, é preciso a chancela da comunidade indígena e da sociedade ao redor. Não a da sociedade distante, como acontece com os defensores do Rio de Janeiro e de São Paulo. 

Tem uma regra muito interessante sobre os indígenas no Brasil: quanto mais próxima a sociedade regional vive do indígena, maior é o sentimento de distanciamento daquela comunidade, ou seja, quanto mais distante é sociedade não indígena da indígena, maior é o amor, o interesse e o carinho. 

O carioca mesmo, defende de modo ferrenho, mas nunca morou com índios. Eu morei durante três anos e meio numa comunidade indígena e sei que é muito difícil, pois eu tentei ajudar cotidianamente e via os mesmos índios bebendo e caindo na praça todos os dias.

Contudo, há de se tomar um cuidado muito grande diante dessa questão, pois nem todo índio é alcoólatra e muitos querem se desenvolver dentro da sua comunidade, mas de fato existe uma grande armação política com respaldo da antropologia tradicional ou para fazer adquirir mais terras ou fazer um movimento político ganhar força indevidamente. Enquanto isso, o índio vive em condições complicadas à espera pelas terras prometidas.

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