terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Clima e fogueira




O clima no divã

João Pereira Coutinho (*)

Um amigo paulistano dizia-me em tempos que só existia um assunto tabu no Brasil. Ou, pelo menos, em São Paulo. Psicanálise. Criticar a psicanálise seria um "hara-kiri" intelectual porque não se critica a deusa suprema da cidade.

Anotei o conselho e não me atrevo a tanto. O satirista Karl Kraus dizia que a psicanálise era a doença mental para a qual oferecia uma cura? Fogueira com ele!

Mas talvez exista uma divindade que está acima da psicanálise. Falo do aquecimento global e das alterações climatéricas. Levantar uma dúvida a respeito -pequena, modesta, até amadora - significa ostracismo social imediato.

Falo por experiência própria. Nas festividades natalinas, com a família reunida, um membro do clã dissertava sobre o caso com ar sério e desesperado. "Se a temperatura subir 1,5 ºC no futuro", dizia ele, "a humanidade desaparece."

Os presentes ficaram compreensivelmente assustados e eu, que tenho fama de pessimista incurável, também deveria embarcar no apocalipse. Mas a minha fama é obviamente imerecida. Não acredito muito no progresso moral da espécie, é um fato. Só acredito em progressos materiais, científicos, tecnológicos.
Nessas matérias, sou o mais otimista dos otimistas. E por isso respondi: "É sempre perigoso fazer previsões sobre o futuro. Até porque o futuro é uma busca interminável, como dizia o filósofo".

Blasfêmia! Futuro? Qual futuro? Com os glaciares a derreterem (no polo norte, não no polo sul; mas divago) e as águas a devorarem a terra, não haverá futuro para ninguém.

Tentei -precisamente- arrefecer a discussão. E, no mesmo espírito popperiano, procurei um consenso. Não, eu não nego que o mundo aqueceu no século 20 (embora no século 21 as coisas estejam um pouco paradas, certo?). E, não, eu não gosto de viver no meio da poluição, respirando alegremente o lixo dos outros.

Além disso, sou o primeiro a marchar pelas energias alternativas: nada me daria mais prazer do que deixar os déspotas do Oriente Médio afogados no seu petróleo inútil.

Mas se a história da humanidade ensina alguma coisa é que a nossa sobrevivência dependeu sempre da inovação técnica não prevista. Olhando para trás, tenho pena dos homens primitivos que viveram antes do fogo ou da roda. 

Tenho pena dos grandes navegadores portugueses que desconheciam o telefone ou a internet. E, hipocondríaco confesso, lamento todos os desgraçados que não souberam o que era uma anestesia.

Por outras palavras: o que hoje pode ser catastrófico, amanhã será uma contrariedade da vida que o engenho humano acabará por domar e controlar. Isso, claro, se estivermos mesmo na presença de um apocalipse.

Nesse momento da conversa, a indignação cedeu lugar ao desprezo. Mas quem era eu para dar palpites sobre o clima? Um especialista na matéria? Com produção científica digna de nota?


Humilhado e ofendido, declarei que não. E, sentindo o aquecimento como fenômeno real (na sala de jantar, digo), afirmei tristonho que era um reles diplomado em história. E que a história, desde o começo dos tempos, me tinha ensinado apenas que nada existe de novo debaixo do sol. 

Brutais alterações climatéricas? Existiram antes do homem existir. E, claro, muito antes de a Revolução Industrial fazer o mesmo que a natureza faz: emissões de CO² para a atmosfera.

Na chamada Idade Média "clássica" (a partir do século 11, digamos), a Europa aqueceu e a civilização inaugurou um dos períodos mais florescentes -na agricultura, nos transportes, no comércio, na urbanização- de que há registro. O brutal arrefecimento verificado a partir do século 17 foi um dos fenômenos mais glosados pelos diaristas ingleses.

Hipótese minha: as alterações mais profundas no termostato da Terra não serão anteriores, e até superiores, a qualquer ação humana? Exatamente como a história -humana, geológica, natural- demonstra?

Por essa altura, já não havia conversa. Apenas o sorriso complacente que se concede aos débeis que vagueiam pelo erro.


Eu, cansado e só, ainda tentei uma fuga para a frente ("E que tal falarmos de psicanálise?"). Mas já era meia-noite e as crianças invadiram o espaço para abrir os presentes.

(*) Escritor português, é doutor em ciência política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Escreve às terças-feiras na versão impressa, e a cada duas semanas no site.

Fonte: Folha de São Paulo 05/01/2016


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