O clima no divã
João Pereira Coutinho (*)
Um
amigo paulistano dizia-me em tempos que só existia um assunto tabu no Brasil.
Ou, pelo menos, em São Paulo. Psicanálise. Criticar a psicanálise seria um
"hara-kiri" intelectual porque não se critica a deusa suprema da
cidade.
Anotei
o conselho e não me atrevo a tanto. O satirista Karl Kraus dizia que a
psicanálise era a doença mental para a qual oferecia uma cura? Fogueira com
ele!
Mas
talvez exista uma divindade que está acima da psicanálise. Falo do aquecimento
global e das alterações climatéricas. Levantar uma dúvida a respeito -pequena,
modesta, até amadora - significa ostracismo social imediato.
Falo
por experiência própria. Nas festividades natalinas, com a família reunida, um
membro do clã dissertava sobre o caso com ar sério e desesperado. "Se a
temperatura subir 1,5 ºC no futuro", dizia ele, "a humanidade
desaparece."
Os
presentes ficaram compreensivelmente assustados e eu, que tenho fama de
pessimista incurável, também deveria embarcar no apocalipse. Mas a minha fama é
obviamente imerecida. Não acredito muito no progresso moral da espécie, é um
fato. Só acredito em progressos materiais, científicos, tecnológicos.
Nessas
matérias, sou o mais otimista dos otimistas. E por isso respondi: "É
sempre perigoso fazer previsões sobre o futuro. Até porque o futuro é uma busca
interminável, como dizia o filósofo".
Blasfêmia!
Futuro? Qual futuro? Com os glaciares a derreterem (no polo norte, não no polo
sul; mas divago) e as águas a devorarem a terra, não haverá futuro para
ninguém.
Tentei
-precisamente- arrefecer a discussão. E, no mesmo espírito popperiano, procurei
um consenso. Não, eu não nego que o mundo aqueceu no século 20 (embora no
século 21 as coisas estejam um pouco paradas, certo?). E, não, eu não gosto de
viver no meio da poluição, respirando alegremente o lixo dos outros.
Além
disso, sou o primeiro a marchar pelas energias alternativas: nada me daria mais
prazer do que deixar os déspotas do Oriente Médio afogados no seu petróleo
inútil.
Mas
se a história da humanidade ensina alguma coisa é que a nossa sobrevivência
dependeu sempre da inovação técnica não prevista. Olhando para trás, tenho pena
dos homens primitivos que viveram antes do fogo ou da roda.
Tenho pena dos
grandes navegadores portugueses que desconheciam o telefone ou a internet. E,
hipocondríaco confesso, lamento todos os desgraçados que não souberam o que era
uma anestesia.
Por
outras palavras: o que hoje pode ser catastrófico, amanhã será uma
contrariedade da vida que o engenho humano acabará por domar e controlar. Isso,
claro, se estivermos mesmo na presença de um apocalipse.
Nesse momento da conversa, a indignação cedeu lugar ao desprezo. Mas quem era
eu para dar palpites sobre o clima? Um especialista na matéria? Com produção
científica digna de nota?
Humilhado
e ofendido, declarei que não. E, sentindo o aquecimento como fenômeno real (na
sala de jantar, digo), afirmei tristonho que era um reles diplomado em
história. E que a história, desde o começo dos tempos, me tinha ensinado apenas
que nada existe de novo debaixo do sol.
Brutais alterações climatéricas?
Existiram antes do homem existir. E, claro, muito antes de a Revolução
Industrial fazer o mesmo que a natureza faz: emissões de CO² para a atmosfera.
Na
chamada Idade Média "clássica" (a partir do século 11, digamos), a
Europa aqueceu e a civilização inaugurou um dos períodos mais florescentes -na
agricultura, nos transportes, no comércio, na urbanização- de que há registro.
O brutal arrefecimento verificado a partir do século 17 foi um dos fenômenos
mais glosados pelos diaristas ingleses.
Hipótese
minha: as alterações mais profundas no termostato da Terra não serão
anteriores, e até superiores, a qualquer ação humana? Exatamente como a
história -humana, geológica, natural- demonstra?
Por essa altura, já não havia conversa. Apenas o sorriso complacente que se
concede aos débeis que vagueiam pelo erro.
Eu,
cansado e só, ainda tentei uma fuga para a frente ("E que tal falarmos de
psicanálise?"). Mas já era meia-noite e as crianças invadiram o espaço
para abrir os presentes.
(*) Escritor português, é doutor em ciência política. É colunista do 'Correio da Manhã', o maior diário português. Escreve às terças-feiras na versão impressa, e a cada duas semanas no site.
Fonte: Folha de São Paulo 05/01/2016
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