O Brasil rural, do agrário
ao agrícola
Zander Navarro e Eliseu Alves
O IBGE
promete realizar neste ano novo Censo Agropecuário. Se for mantido,
reafirmarão, com maior intensidade e nitidez, as tendências principais e o
aprendizado extraídos no censo anterior.
A mais
reveladora dessas evidências foi iluminar um setor perpassado por preocupante
dualidade: de um lado, produção e
produtividade espetaculares, o Brasil como potência agrícola; de outro, a persistência da pobreza e as revelações
sobre mudanças sociais dramáticas e inéditas. Sobretudo o seu esvaziamento populacional, em parte
decorrente da impressionante concentração da riqueza, que limita fortemente as
oportunidades sociais.
Em
decorrência dessa dualidade, estamos
observando o nascimento de uma agricultura sem agricultores. Um setor de
alto rendimento econômico, mas sem burburinho social em suas regiões rurais,
onde cada vez mais reina o silêncio.
Morre o agrário, que deixou tantas marcas em nossa história política e, com ele, os latifúndios, a reforma
agrária, o MST e as “lutas sociais”.
Agonizam o sindicalismo rural e os
personagens rurais da literatura. Nasce o essencialmente agrícola, fruto de
uma economia de alta produtividade.
Examinado
o último meio século, três grandes transformações se destacam. Primeiramente, os preços reais dos alimentos caíram pela
metade, permitindo a milhões de brasileiros de renda mais baixa o acesso a
dietas mais saudáveis e fartas.
Em
segundo lugar, e graças à capacidade dos produtores, verificou-se um extraordinário
movimento de intensificação tecnológica, elevando a produção e a produtividade.
Pulamos de um patamar então estancado em 50 milhões de toneladas de grãos, em
1980, quando ainda importávamos feijão, para os quase 200 milhões atuais, alçando o Brasil à posição de segundo maior
produtor global de alimentos. O ganho mais expressivo foi a constituição de
um setor movido pela ciência, o que
torna infantis as usuais condenações de “primarização da economia”, pois se
formou um sólido setor agroindustrial em torno da produção. Se não fosse assim,
a agricultura não ostentaria seus altíssimos índices de produtividade.
Por
fim, há outro aspecto decisivo. A
agropecuária brasileira, desde a grande crise do início da década de 1980, vem salvando os saldos comerciais do País,
cobrindo a contínua perda de importância relativa das exportações industriais,
em especial a partir da década de 1990. Em
um quarto de século (1990-2014) o total das exportações agrícolas foi de pouco
mais de US$ 1 trilhão. Daí a pergunta: sem esse desenvolvimento da
agricultura, onde estariam hoje a economia e a nossa sociedade? Certamente, com
o crescimento populacional, experimentaríamos uma sucessão de crises
intermináveis.
Fôssemos
um povo com memória, deveríamos estar
homenageando diuturnamente os produtores rurais (grandes e pequenos), que nos
vêm salvando a tantos anos, modernizando o setor. Um país com mais
consciência sobre a sua própria História deveria reconhecer fatos de tamanha
relevância econômica e social.
O Censo
deste ano registrará, sem dúvida, a persistência daquela dualidade. No
anterior, foi verificado que somente 11,4% dos estabelecimentos rurais
respondiam por 87% da produção agropecuária. O que revelarão as novas
estatísticas? Há inúmeros desafios em curso que precisam ser enfrentados. As tendências demográficas são alarmantes,
pois em um quinto dos estabelecimentos rurais os casais não têm filhos, o que
sugere que logo deixarão o campo.
As
taxas de natalidade rurais são praticamente iguais às urbanas, as famílias
reduziram-se e vai desaparecendo a oferta de trabalho em todas as regiões.
A épica aventura das migrações rurais retratada no passado hoje inexiste e qualquer jovem se aventura a deixar o
campo sem nenhum temor. As moças saem antes e, assim, o mundo rural se masculiniza,
tornando-se gradualmente inabitável.
No
plano econômico e financeiro, vigoram formas de acirramento concorrencial que estão encurralando os pequenos
estabelecimentos rurais, uma vez que são remotas suas chances de competir com
os que detêm maior integração com os mercados e acesso ao crédito e à
tecnologia. Mesmo assim, parcelas
significativas de imóveis com menos de cem hectares vêm obtendo rendas mais
altas do que as grandes propriedades, especialmente se tiverem acesso à
água e produzirem frutas, hortaliças e pequenos animais.
Infelizmente,
o Estado e a ação governamental,
incluindo as instituições de pesquisa agrícola, no geral vêm ignorando essas
mudanças aqui apontadas. Urge trazer à frente o conhecimento sobre os
processos econômicos e financeiros, pois são eles que atualmente comandam
ferreamente o setor agropecuário. Há muito os focos agronômico e tecnológico se
renderam aos imperativos da rentabilidade, mantidas as exigências crescentes de
sustentabilidade ambiental.
Sem renda, nenhuma família rural ativará seus
recursos para pôr em marcha essa fabulosa máquina de produzir riqueza. Temos a
combinação ideal de recursos naturais e um conjunto de produtores capazes, além
de mercados, o interno e o externo, que precisam ser saciados. Não podemos desperdiçar esta oportunidade.
*Zander Navarro é
sociólogo e pesquisador em Ciências Sociais
*Eliseu Alves é
doutor em Economia Rural, foi presidente da Embrapa.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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